Os profissionais também choram. E riem

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Há 27 anos que trabalho com aquilo que a humanidade tem de pior - a violência. Seja a violência física, psicológica ou sexual, seja sobre crianças, jovens ou adultos, e perpetrada sobretudo por aqueles em quem mais se confia e de quem mais se espera cuidado e proteção. Ao longo destas quase três décadas começo a sentir que já vi e ouvi de tudo e que nada mais poderá surpreender-me porque, em bom rigor, já espero o pior. Sou - talvez fruto da profissão -, uma pessoa muito desconfiada e hipervigilante que diariamente tenta contrariar as expectativas mais negativas e que luta para conseguir ver o copo meio cheio… ainda que o sinta cada vez mais vazio.

Uma pergunta que me é feita de forma recorrente é “como aguentas?”.

Como se desliga o botão e fazemos a nossa vida sem nos deixarmos afetar de forma muito significativa pelas situações que acompanhamos?

Como conseguimos dormir sem ter pesadelos com aquilo que vemos e ouvimos?

Como conseguimos confiar em alguém e deixar os nossos filhos viver a sua vida sem os prender numa redoma de vidro?

Como conseguimos rir?

Estas são perguntas difíceis às quais nem sempre sabemos como responder. Porque, em boa verdade, nem sempre conseguimos desligar, viver a vida tranquilamente e sorrir.

Falo por mim, mas sei que falo também pela maioria dos profissionais que trabalham com o lado mais obscuro da humanidade e que diariamente convivem com a dor e o sofrimento. Profissionais de todas as áreas.

Olhando para trás, recordo os primeiros anos em que trabalhei e em que tinha insónias, pesadelos, ataques de choro mais frequentes e pensamentos que teimavam em não sair da minha cabeça. Com o passar do tempo, é certo que aprendemos a lidar com estas situações e a ganhar a distância necessária que nos permite manter a empatia e, ao mesmo tempo, preservar a nossa saúde mental. O recurso ao humor surgiu também como uma estratégia para conseguir lidar com a realidade e é, por isso, frequente, dizer piadas de modo a tentar aligeirar as situações com que me deparo.

Hoje, volvidos tantos anos, são já pontuais as situações que me afetam de uma forma mais significativa. Mas ainda existem.

Ainda hoje me deparo com pessoas cujas histórias de vida e vivências me fazem sentir náuseas, dores de barriga e vontade de vomitar. Ainda hoje ouço relatos que me emocionam e humedecem os olhos. Ainda hoje levo para a cama as memórias de algumas situações que me impedem de ter um sono tranquilo.

Pois é, os profissionais, mesmo os mais experientes, também choram. E riem, tantas vezes com vontade de chorar.

Chorei há dois dias, depois de estar durante quase quatro horas com uma vítima de abuso sexual no contexto da Igreja. E não tenho vergonha de o dizer, pois acredito que estas manifestações emocionais são, afinal de contas, a prova de que somos humanos e que a exposição continuada a experiências traumáticas não conduziu, ainda, a uma total dessensibilização e distanciamento.

Ainda.

O que significa também que temos todos - profissionais que convivem com o trauma -, de zelar pelo nosso bem estar psicológico, promovendo estratégias de autocuidado. Para que possamos continuar a chorar e a rir mas, sobretudo, a ajudar o outro.

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

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