Os pequenos poderes

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Num contexto de carência de trabalhadores, necessidade de captar e concretizar investimentos ou alargar as possibilidades de habitação, dir-se-ia que faria sentido tornar mais rápidos e mais previsíveis procedimentos que dependem do Estado e das suas diversas encarnações. Desde logo procedimentos de licenciamento, avaliações e autorizações diversas, cuja necessidade é transversal, quer para a remodelação de uma casa quer para a construção de uma indústria. Foi o que se fez em 2023, aliás, mas a realidade consegue diluir as melhores intenções.

A excessiva compartimentação de competências e de recrutamento de recursos, nomeadamente ao nível local, cria diversas dificuldades. Um clássico nacional é o de autarquias, de quem depende por exemplo a apreciação de projetos urbanísticos, alegadamente com recursos humanos em falta e cuja ausência é apresentada como justificação para o incumprimento demasiado frequente de prazos previstos na lei. No limite, como conheci, autarquias sem até um arquiteto nos seus quadros, o que impossibilita desde logo a mera tentativa de cumprimento da lei nesse concelho. Ora a ideia de que cada microautarquia deve deter obrigatoriamente os seus próprios recursos técnicos, replicando estruturas e processos de decisão, independentemente do volume de procura, deveria ser repensada, sem causar trauma a ninguém. O que invalidaria a criação de uma pool técnica de trabalhadores comuns a diversos concelhos, arquitetos, engenheiros, fiscais, outros cujas funções são fundamentais, e que poderiam ser partilhados entre diferentes autarquias e residir em locais distintos? E integrar nestas funções, em momentos de maior pressão, contratados externos?

Se a ideia de serviços partilhados e de novas ferramentas e possibilidades de trabalho é já um dado adquirido, por que não a concretiza efetivamente o Estado?

A apreciação técnica de um projeto de arquitetura ou de engenharia por um arquiteto ou engenheiro que não seja funcionário em concreto de uma dada Câmara Municipal é um atentado à autonomia do poder local? Põe em causa essa sacrossanta soberania, que muitas vezes apenas se revela na medida em que atrasa ou dificulta a vida a um cidadão ou a uma empresa e que manifestamente não impediu décadas de atentados urbanísticos e ambientais? O interesse público apenas é cumprido e defendido se houver um técnico dependente de um dado dirigente numa dada autarquia? E, já agora, quantas vezes, ele próprio criador de direito não escrito, de regras que vêm apenas de preconceitos, convicções pessoais, interpretações abusivas ou só absurdas... Os pequenos poderes, como sabemos, são muitas vezes os mais difíceis de contestar pelas regras devidas, até porque mais invisíveis e menos sindicados.

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