Há cerca de 14 anos, li o livro Music as Social Life - The Politics of Participation (numa tradução livre do inglês, Música como Vida Social - As Políticas de Participação), do etnomusicólogo norte-americano Thomas Turino, que ofereceu palavras a várias coisas que eu sentia quando tocava e para as quais não tinha encontrado nada que as exprimisse.Numa jam session (não vou, de certeza, traduzir esta designação para sessão de compota) qualquer, os músicos, tal como fazem nos concertos, mas de forma mais desabrida, não estão apenas a tocar, estão a abanar a cabeça, a bater os pés, a fechar e a abrir os olhos, a deixar que a música transborde por todos os poros. Por oposição, numa orquestra barroca, por exemplo, os músicos, por mais expansivos que sejam, contêm-se e seguem regras na busca incessante por uma harmoniosa e formal sincronização com todos os outros. Além disso, seguem a pessoa que está a dirigir os músicos, que não é necessariamente um maestro, mas alguém que assume essa função a partir do seu instrumento.Em todas estas manifestações artísticas, segundo aquilo que retive de Thomas Turino, os públicos têm um papel proporcional. Quando as pessoas estão num concerto da Portishead, estão a olhar para Beth Gibbons e a sentir um leque de vários sofrimentos, alegrias e ausências com as quais se identificam. De certeza que num concerto de Korn - as lendas do nu metal californiano - o público não vai estar estático entre descargas niilistas e empurrões no mosh pit. Enquanto assiste à interpretação de Couplets des Folies D’Espagne, de Marin Marais, tocada pelo Hespèrion XXI, do gambista Jordi Savall, o público permanecerá em silêncio até que haja um sinal de que os músicos podem ser aplaudidos. E, se assim não for, haverá reprimendas pelas interrupções. São rituais..Portanto, as pessoas, entre públicos e músicos, têm diferentes níveis de participação nas expressões musicais. Os diferentes graus de proximidade ou afastamento físico não são juízos de valor, mas podem ser, considerando que, muitas vezes, quando a música provoca desinteresse ou quando não há uma afinação entre aquilo que é tocado e aquilo que se quer sentir, as pessoas tendem a sair porta fora. No meio disto tudo, é fácil concluir que há músicas que implicam uma maior ou uma menor participação do público e mesmo entre os próprios músicos. Mas isto nem sempre faz sentido.Depois de alguns anos a tocar flauta de bisel barroca como mero entusiasta, descobri que era possível alargar os horizontes. Cresci a ouvir Brigada Victor Jara, José Afonso ou The Chieftains, por prodigiosa influência do meu pai. Por este motivo, não era alheio a instrumentos de matriz rural (ou tradicionais, se esta designação facilitar a leitura). Foi assim que em 1999, num momento que teve tanto de errado como de inovador na minha vida, comprei a minha primeira gaita de fole (o nome do instrumento, em Portugal, entre epítetos de caráter sexual que ignorarei de propósito, pode assumir variações, desde gaita galega a gaita-de-foles; por ter apenas um fole, em forma de odre, neste texto vou usar a designação gaita de fole, que os meus amigos gaiteiros certamente apreciarão). Era uma gaita de fole tenebrosa, feita em freixo, afinada em Si bemol. Uns cinco anos depois, comprei um ponteiro (tubo melódico do instrumento) afinado em Dó, em madeira de granadilho, construído em Pontevedra, na Galiza, pelo obradoiro (nome do artesão que constrói gaitas naquela região autónoma de Espanha) O Chilro. Depois, comprei um fole decente, por intermédio do gaiteiro galego Bieito Romero, fundador dos Luar na Lubre. Na fase final do processo, o soprete e os bordões (os restantes componentes do instrumento) foram feitos na povoação de Maceira, em Torres Vedras, pelos construtores Victor Félix e Mário Estanislau.Estes meus momentos de evolução musical foram acompanhados por vários diagnósticos de cancro que a minha mãe recebeu durante 11 anos, entre 1997 e 2008. Algures a meio do processo, aparentemente na brincadeira, ela pediu-me que tocasse gaita de fole no funeral dela, que estaria a uns anos de distância.Um dia, ela morreu. Eu não tinha vontade de tocar, como é evidente, mas não podia deixar de o fazer. Na despedida, de caixão aberto, depois do padre debitar umas palavras que não me faziam sentido, cumpri o desejo da minha mãe. Para além do meu improviso, só havia silêncio. Não sei o que toquei, mas uma prima minha, distante, cujo nome desconheço, elogiou-me pela música. Ainda não percebi o grau de participação do público naquele momento, ou até o meu envolvimento. Só sei que naqueles instantes não existi.