Opinião pessoal (LVIII)
Nasci e vivi em Campo de Ourique. No terceiro quartel do século XX era um bairro lisboeta extraordinário pela capacidade de produzir, em quem aí residia, um sentimento de elevada satisfação. Gerava um entusiasmo singular associado a uma profunda sensação de pertença. Habitar aí era diferente. Único.
Morávamos no número 105 da Rua Coelho da Rocha. Hoje seria um andar classificado como T9, amplamente iluminado por outras tantas janelas, além de uma varanda na dobra da esquina com a Rua Azedo Gneco. Meus pais tinham quatro filhos e uma filha. Vivíamos com alegria.
Já as anteriores gerações da família residiram no Bairro, tanto do lado paterno como materno. Meu Pai nascera no 75, também da Coelho da Rocha e minha Mãe no número 10 da Rua 4 de Infantaria, mesmo junto ao entroncamento inicial.
O Bairro tinha sido planeado ainda durante a Monarquia, mas a construção da maioria dos arruamentos, das infraestruturas e dos respetivos edifícios entraram pelo tempo da República.
No início do Ensino Liceal, aos 10 anos de idade, recordo que um dia, perguntei, inocentemente, a meu pai qual era a razão da nossa rua ser chamada Coelho da Rocha, respondeu:
- Essa, Francisco, é uma boa pergunta. Todos nós devemos saber quem é o patrono que dá o nome à rua onde moramos, ou à nossa escola ou a determinada instituição. Ora, a rua é assim chamada porque Manuel António Coelho da Rocha, que morreu há muito tempo, há mais de 100 anos, era um grande especialista em História e em legislação, que a Câmara Municipal de Lisboa decidiu assim homenagear.
- Então, quem era Pedro Nunes que dá o nome ao meu liceu? - E logo depois, insisti com nova questão:
- E Passos Manuel, onde anda o meu irmão João?
- São perguntas importantes -, comentou meu Pai, para a seguir acrescentar:
- Estuda os dois. Vê quem foram Pedro Nunes e Passos Manuel até sábado. Pede ajuda ao teu irmão. Se acertarem podem ir sozinhos ao cinema Europa.
Ficámos encantados. Era uma boa promessa. O cinema Europa era bem perto de nossa casa. Se bem que que fosse ainda o primeiro “Europa”, estava implantado no mesmo local, na esquina da Rua Francisco Metrass com a Almeida e Sousa.
Foi aqui que vimos, vezes sem conta, a primeira versão da Música do Coração que, na altura, se chamava A Família Trapp, de Wolfgang Liebeneiner (1956), sobre as perseguições nazis na Áustria, e o Rio Bravo, de Howard Hawks (1959), um Western com a lindíssima Angie Dickinson que se apaixona pelo xerife.
A verdade é que o bilhete era muito acessível e para minha mãe representava um sossego ter lá os gémeos sentados durante duas horas. Chegava a perguntar-nos se não queríamos ir ver outra vez, apesar do filme ser o mesmo...
(Continua)
Ex-diretor-geral da Saúde
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