Opinião pessoal (XLII)
Retomo, hoje, o tema dos problemas relacionados com o abastecimento de água para consumo humano.
Trago aqui testemunhos pessoais que vivi no início da minha carreira, primeiro, como interno no Hospital Curry Cabral e, depois, como delegado de saúde colocado no Distrito de Beja.
Recuemos a 1974. Ao mesmo tempo que o Movimento das Forças Armadas nomeava os sucessivos seis Governos provisórios, ocorriam epidemias de cólera em Lisboa e no Porto. Sublinho, cólera na capital do “Império” como resultado da herança recebida do Estado Novo que foi marcada pela precariedade de infraestruturas de saneamento.
O então diretor-Geral da Saúde, Arnaldo Sampaio (1908-1984), esteve na linha da frente da luta contra a epidemia. Na altura, pela primeira vez, os meios de comunicação social (RTP, em particular) foram chamados para divulgarem as recomendações do Diretor-Geral da Saúde, na perspetiva de serem observadas pelas populações, no sentido de participarem na implementação de medidas de prevenção e controlo. Naturalmente, foram os bairros mais pobres da periferia de Lisboa os mais afetados pela epidemia. Sampaio confirmou que a cólera era provocada pelo vibrião El Tor do serótipo Inaba, que circulava, como endémico, em Angola. Era, portanto, uma epidemia importada.
Ora, como se sabe, a bactéria da cólera é eliminada pelas fezes dos doentes, sendo transmitida por via hídrica. Isto é, uma pessoa adquire a doença ao beber água contaminada com o vibrião colérico!
No total, foram registados mais de 2500 casos (incluindo dezenas de óbitos).
Como médico interno dos Hospitais Civis de Lisboa, participei diretamente no atendimento a doentes suspeitos, que eram encaminhados para uma consulta especialmente dedicada a esses doentes, que tinha sido instalada para o efeito no Hospital Curry Cabral. Apesar da imensa pressão que o volume de doentes originava, as consultas decorriam sem problemas. Todos eram consultados sem espera.
Eu, como médico de plantão a esse serviço, começava por entrevistar o doente sobre o quadro clínico e a seguir observava se existiam sinais de desidratação.
Invariavelmente, media a pressão arterial, antes da fase de aconselhamento e da prescrição. Quase sempre receitava sais de reidratação e tetraciclina, para além de insistir na desinfeção da água pela fervura ou pela adição de gotas de solução de hipoclorito (distribuído gratuitamente).
A situação de debilidade das condições de abastecimento de água e de sistemas de esgotos, representava, para mim, um sentimento de revolta. Como era possível uma pessoa beber água contaminada com fezes de doentes?
Julgo que esse tempo viria a explicar o meu interesse futuro pela Saúde Pública.
(Continua)