Um problema de segurança nacional
O primeiro grande texto em língua portuguesa em que a questão ambiental foi identificada como problema derivado da má gestão humana dos recursos naturais foi apresentado em 1815 por um génio: José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), naturalista e estadista, poeta e soldado, cientista e humanista, diplomata e pensador, companheiro de Humboldt e Lavoisier, cosmopolita e "patriarca da independência" do Brasil, nessa obra, A Memoria sobre a Necessidade e Utilidades do Plantio de Novos Bosques em Portugal, apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa, Andrada e Silva alertou para a necessidade de uma ousada política de fomento de bosques e florestas no território continental português, de forma a evitar a repetição das situações de desertificação provocadas pela incúria humana em outros lugares e momentos da história, como foram os casos da Síria, Fenícia, Palestina e Chipre. Andrada e Silva antecipou em muitas décadas o próprio conceito de "ecologia", definida por ele como "economia geral da natureza". Foi um pioneiro na compreensão da maior ameaça à sobrevivência da civilização humana neste tormentoso século XXI.
A 27 de abril de 1971, subia à tribuna da Assembleia Nacional um jovem deputado da chamada Ala Liberal da Primavera marcelista, de seu nome José Correia da Cunha. Antes de ser eleito deputado, em 1969, Correia da Cunha tinha-se licenciado duplamente, primeiro em Agronomia (1949) e depois em Geografia (1963), tendo aqui colaborado com o grande mestre da Geografia portuguesa Orlando Ribeiro. Ligado ao Ministério da Agricultura, desde 1951, Correia da Cunha foi, como docente, o introdutor em Portugal dos estudos de Geografia Aplicada, e como técnico de planeamento do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho de Ministros o responsável pela definição geográfica das primeiras Regiões de Planeamento do país (1967). O discurso intitulava-se "O ordenamento do território, base de uma política de desenvolvimento económico e social". Destacava, visionariamente, a necessidade de acomodar a gigantesca deslocação migratória do interior para o litoral, que iria ocorrer até ao ano 2000. Em junho desse ano, ele seria nomeado presidente do primeiro órgão da política pública de ambiente em Portugal, a Comissão Nacional do Ambiente. A revolução de Abril conformou-o no lugar, devido à sua inatacável competência.
O que une Andrada e Silva e Correia da Cunha é o que falta hoje em muitos domínios da política nacional. Os dramáticos incêndios no centro do país são o corolário de muitas décadas de apatia, ausência de planeamento, cegueira estratégica. Tanto em 1815 como em 1971, os nossos melhores sabiam que a gestão da natureza e o ordenamento do território - fundamentais para uma nação que não queira desaguar num deserto - implicam fortes políticas públicas, intensivas em conhecimento, trabalho e capital. As imagens de Pedrógão Grande são imagens de guerra. A natureza responde violentamente ao abandono a que foi votada. Não temos floresta, mas campos de batalha. Os interesses mesquinhos paralisam a capacidade de decisão. As leis ficam por aplicar. Os incêndios são uma vergonha. Sinal de um país incapaz de habitar pacífica e ordeiramente o seu território. As florestas que ardem representam o que já sabemos, nos planos social, económico e ambiental. Mas só quando formos capazes de o assumir como um problema de segurança e defesa nacional, mobilizando os meios excecionais para impor o interesse público, é que poderemos ter alguma esperança de sair desta maldição de que somos inteiramente responsáveis.