José Manuel Tengarrinha (1932-2018): O Homem que amava a verdade e não sabia odiar
Só as grandes personalidades são capazes de passarem pelas "forças diabólicas" (para usar uma expressão de Max Weber) que povoam a experiência política nas suas modalidades mais intensas, sem queimarem a alma
Escrevi o essencial deste esboço biográfico de José Manuel Tengarrinha em Novembro de 2014, para uma publicação online dedicada a traçar breves perfis de resistentes contra a ditadura. A morte, ao transportar-nos do tempo para a eternidade, exige um exercício crítico de memória, devolvendo a esta síntese de um percurso notável de vida uma maior atualidade. Contudo, para os leitores do Diário de Notícias, que agora acedem a este texto, em busca de informação sobre esta grande figura de cidadão, de investigador e de professor, desaparecido em 29 de Junho de 2018, gostaria de confidenciar algo que só o conhecimento direto, em primeira pessoa, permite. Aquilo que de maior e mais singular encontrei sempre nos meus anos de convívio com José Manuel Tengarrinha foi a relação inversamente proporcional entre a sua insaciável curiosidade intelectual pelos temas e pelas pessoas, pelo mundo, numa palavra, e a sua absoluta incapacidade de manifestar um juízo de anulação do outro a um mero espantalho ideológico. O seu amor pela busca da verdade, e a sua imensa capacidade para compreender as pessoas, nas suas motivações, valores e limites, tornava-o incapaz do ódio. Só as grandes personalidades são capazes de passarem pelas "forças diabólicas" (para usar uma expressão de Max Weber) que povoam a experiência política nas suas modalidades mais intensas, sem queimarem a alma. Pelo contrário, ao abandonar um longo período de absorvente atividade política, iniciada muito antes do 25 de Abril, José Manuel Tengarrinha regressou a uma vida de estudo e generoso proselitismo cultural com uma pureza de ânimo e uma paixão pelo conhecimento mais acentuadas e luminosas do que, provavelmente, em qualquer fase anterior da sua existência.
Para um esboço biográfico
José Manuel Marques do Carmo Mendes Tengarrinha nasceu em Portimão, em Abril de 1932. A sua vida é marcada por um valor e duas paixões fundamentais. O valor é o da liberdade, sob todas as formas e em todas as circunstâncias. Foi por ter colocado a sua vida ao serviço da liberdade, que, corajosamente, a perdeu por várias vezes, nos calabouços da polícia política, para que ninguém dela fosse injustamente privado no nosso país. Muitos portugueses recordam-se, ainda, de ver o seu rosto pálido, aos 42 anos de idade, saindo do Forte de Caxias em 27 de Abril de 1974. As duas paixões são praticamente gémeas: por um lado, a generosa dádiva cívica, em favor da elevação cultural do debate praticado no espaço público; em segundo lugar, uma dedicação constante e amorosa ao conhecimento, ao prazer do estudo e da investigação científica, e, sobretudo, o cuidado constante pela memória histórica, cultivada com rigor crítico.
Um resistente em várias frentes
José Manuel Tengarrinha começou a escrever o seu destino como cidadão aos 15 anos de idade, como militante do MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática), cuja Comissão Central chegou a integrar. No período do Serviço Militar Obrigatório ficou detido durante um ano na Companhia Disciplinar de Penamacor. A sua insubmissão política, seria traduzida nas suas sucessivas apostas políticas, desde o MUD Juvenil, passando pelo PCP, até à CDE, de que seria o rosto mais visível. O envolvimento cívico ativo, levá-lo-ia a ser um alvo habitual da PIDE, tendo sofrido, repetidamente, a perseguição, a prisão e a tortura. Sempre nas fileiras da Oposição Democrática travou todos os combates eleitorais entre 1958 e 1974, tendo sido candidato à Assembleia Nacional pelo círculo de Lisboa, nas eleições do período marcelista, em 1969 e 1973, tendo sido uma figura de destaque nas duas grandes reuniões da Oposição, respetivamente o Congresso Republicano de 1969, e o Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, em 1973. O preço da resistência pagou-o também, duramente, na sua vida profissional. A repressão do Estado Novo procurou retirar-lhe os meios de subsistência. Foi impedido, em simultâneo, depois de uma prisão em finais de 1961, da docência no Ensino Secundário e afastado pela Censura do exercício da atividade jornalística. Na sua busca por trabalho, encontrou sempre a insidiosa pressão da polícia política para o levar ao despedimento.
As permanentes dificuldades não o impediram de satisfazer a sua paixão pelo conhecimento. Em 1958 concluiu a licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Desde 1953 que trabalhara como jornalista profissional no jornal República, tendo sido, também, o chefe de Redação, até 1962, de um projeto inovador, o Diário ilustrado. Trabalhou igualmente, ao lado de António José Saraiva, Maria Lamas e Júlio Pomar na revista Vértice. Na década de 60, integrou a redação da revista Seara Nova. Em 1962, foi-lhe outorgado o Prémio da Associação dos Homens de Letras do Porto, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, pela obra António Rodrigues Sampaio, Desconhecido, que coligia uma série de ensaios publicados em sucessivas edições do Diário de Lisboa. Na condição de bolseiro da FCG prosseguiu, entre 1963 e 1966, os seus estudos sobre o Século XIX Português, uma das suas áreas prediletas de investigação. Na companhia ilustre de Vitorino Nemésio, Joel Serrão e José Augusto França, fundou o dirigiu o Centro de Estudos do Século XIX do Grémio Literário, que manteve atividade entre 1969 e 1974 com o patrocínio da FCG. Nesse âmbito foram realizadas numerosas atividades de investigação e ação de promoção cultural, nomeadamente, cursos, colóquios e conferências sobre o Portugal Oitocentista.
O historiador e o cidadão interveniente
Uma das maiores alegrias que José Manuel Tengarrinha terá sentido, foi a decisão de ser acolhido como docente na FLUL, tomada por um plenário de estudantes, logo a seguir à Revolução dos Cravos. Na Universidade de Lisboa viria a reger algumas cadeiras centrais para a compreensão da história contemporânea de Portugal, incluindo os domínios económico-sociais. Os seus interesses, como historiador, pelos movimentos sociais, pelas manifestações da liberdade, em particular na construção de uma verdadeira esfera pública, que só o advento da imprensa permitiu e permite, foram acompanhados com coerência plena pelos seus esforços como dirigente partidário. Apostando sempre em que a liberdade e a justiça são complementares, José Manuel Tengarrinha transformou a CDE num partido, o MDP/CDE, de que foi presidente. Foi deputado constituinte. Foi Vice-Presidente da Comissão Parlamentar de Educação, coordenou e redigiu parcialmente o projeto que seria o embrião da Lei de Bases do Sistema Educativo. Ao longo de sucessivas batalhas eleitorais e muitas outras lutas cívicas, Tengarrinha tentou transformar o MDP/CDE numa força autónoma, capaz de estabelecer pontes amplas entre os principais partidos da esquerda. Sem fechar as portas do diálogo ao PCP e ao PS, Tengarrinha insistiu sempre na importância da legitimação democrática e popular das grandes decisões coletivas, sem deixar cair, contudo, a importância da manutenção do ideário socialista, numa altura em que a vaga neoliberal se anunciava, ainda timidamente, no horizonte.
A democratização do país permitiu a José Manuel Tengarrinha consagrar-se plenamente à sua vocação académica, tendo a sua obra ganho uma merecida repercussão e influência internacionais. Criou, dirigiu e lecionou mestrados, em Portugal, nas áreas da História Contemporânea, História Moderna, História do Brasil, História da Imprensa Periódica, História Regional e Local, Cultura e Formação Autárquica. Orientou, nestas áreas, numerosas teses de mestrado e doutoramento. Lecionou em cursos e seminários de doutoramento em Universidades estrangeiras, entre outras: Florença, Pescara, Bolonha, Paris VII, Nantes, Valladolid, Bilbao, Autónoma de Barcelona, Carlos III de Madrid, Sevilha, Canárias, École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Foi, igualmente, professor visitante da Universidade de São Paulo para cursos de pós-graduação. Integra conselhos de redação e editoriais de revistas de História e Ciências Sociais de Portugal, Espanha e Brasil.
Uma obra vasta e inspiradora
Já depois de ter concluído a sua carreira como docente universitário, José Manuel Tengarrinha não cessaria de se envolver ativamente em diversas linhas de ação cultural. Foi Diretor dos Cursos Internacionais de Verão realizados em Cascais, todos os anos, desde 1992. Foi Presidente e fundador do Centro Internacional para a Conservação do Património (CICOP - Portugal), com sede mundial em Tenerife. Foi Presidente do Instituto de Cultura e Estudos Sociais (sediado em Cascais), que tem organizado cursos de mestrado e outros cursos sobre diversos temas e apoiado projeto de investigação pós-doutoramento de historiadores portugueses e brasileiros.
O resultado de muitas décadas de estudo, ensino e investigação conduziram a uma vastíssima e muito diversificada obra, que, nos respetivos domínios se assume como referência bibliográfica incontornável. Sem pretender ser exaustivo, destacam-se aqui algumas obras publicadas em Portugal e no estrangeiro, no domínio da História e das Ciências Sociais, com destaque para Obra Política de José Estêvão, 1962; História da Imprensa Periódica Portuguesa, 1965 e 1989; A Novela e o Leitor. Estudo de Sociologia da Leitura, 1973; Diário da Guerra Civil. Sá da Bandeira, 1975-1976. Combates pela Democracia, 1976; Estudos de História Contemporânea de Portugal, 1983; Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida; Uma Exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Movimentos Populares Agrários em Portugal - 1750-1825, 1994; História do Governo Civil de Lisboa, 2002; Imprensa e Opinião Pública em Portugal, 2006; E o Povo onde está? Política Popular, Contra-Revolução e Reforma em Portugal, 2008. Portimão e a Revolução Republicana, 2010. Nova História da Imprensa Portuguesa. Das Origens a 1865, 2013. Numerosas separatas da sua autoria foram editadas por universidades de Itália, França, Holanda e Espanha, além de Portugal. No Brasil (São Paulo), publicou A Historiografia Portuguesa, Hoje, 1999; Historiografia Luso-Brasileira Contemporânea, 1999 e História de Portugal, 2003 (3 edições). Em 2011, a convite da Assembleia da República, publicou José Estêvão - O Homem e a Obra. Em Fevereiro de 2012 efetuou, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a apresentação pública dos resultados do projeto Legislação do Brasil Colonial. 1502-1706.
A justiça continua por cumprir
José Manuel Tengarrinha recebeu numerosas distinções, como a Medalha de Honra do Município de Cascais (2006), e uma verdadeira manifestação nacional de reconhecimento por ocasião do seu 80.º Aniversário, em Abril de 2012. Muito crítico do atual curso político e social em Portugal e na Europa, José Manuel Tengarrinha continuou a recusar opor à inércia da realidade o azedume ou a amargura. Com a serenidade e a gentileza que caracterizam o seu respeito pelos outros, com a capacidade de confiar no melhor da condição humana, José Manuel Tengarrinha continuou sempre a ser um apaixonado pelo futuro. Ele soube sempre que o segredo do porvir se esconde, duplamente, nas nossas raízes históricas, cujo processo de interpretação é interminável, e na nossa capacidade de agir, de criarmos no presente as sementes de esperança concreta, capazes de alimentar a justiça e a liberdade. O que só pode ser realizado pelos atos e pelos caminhos que, como indivíduos e sociedades, somos capazes de decidir e trilhar em conjunto.