Internet "resolve" mistério do monólito do deserto do Utah*

*ou como a descoberta só é possível se a informação for livre e partilhada e a ciência nunca pode funcionar bem em regimes totalitários. E como Barack Obama na realidade é hipócrita (será que deu por isso?)
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Está a ser o caso que distrai milhares de pessoas dos assuntos sérios do quotidiano. O objeto prateado, visivelmente artificial, descoberto por um piloto de helicóptero no deserto do Utah faz lembrar o monólito do filme 2001 - Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick: a sua origem é tão misteriosa quanto a peça extraterrestre da obra-prima do mestre do grande ecrã e, naturalmente -- em especial neste ano em que tudo é atípico -- as imaginações ganharam asas.

É muito pouco provável que a estrutura metálica agora detetada no meio de cabras num deserto dos Estados Unidos seja um enviado de outra civilização, como no filme. A não ser que a pandemia seja afinal bem pior do que estamos a prever, a humanidade esteja mesmo à beira da extinção e o futuro seja afinal dos descendentes desses caprinos, tendo este monólito vindo dar um "empurrãozinho" na sua evolução.... mas agora sou eu a deixar-me levar pela imaginação e pelo filme!

Voltemos à realidade. Com as ferramentas que a internet põe hoje em dia à disposição de qualquer pessoa no mundo livre, em poucos dias o mistério da origem do objeto prateado ficou mais ou menos resolvido.

Um grupo de "detetives da internet" no fórum Reddit pôs-se a analisar as imagens de satélite da zona disponíveis livremente online, designadamente através do Google Earth, para detetar uma janela temporal do aparecimento do objeto.

Mas para que o conseguissem fazer tiveram primeiro de isolar a região aproximada em que ele está. De modo a proteger aquela área protegida, as autoridades não divulgaram a sua localização -- de forma a evitar "peregrinações" de pessoas ao local, que destruiriam a região --, pelo que o grupo de internautas teve de utilizar os dados de sobrevoo dos helicópteros dos serviços de segurança do Utah para triangularem a zona -- uma informação também, hoje em dia, disponível online no Ocidente.

Resultado: o monólito do Utah, chamemos-lhe assim, apareceu entre agosto de 2015 e outubro de 2016, escreve esta quinta-feira a CNet, que noticia o resultado desta pesquisa. Uma ampla janela temporal pouco precisa, mas nada mau para um grupo de pessoas que apenas têm à disposição tempo livre, internet e uns computadores. E vontade de se juntarem, conversarem e tentarem resolver um problema.

Durante este período, lembra o CNet, a série de ficção científica Westworld esteve a ser gravada naquela zona, pelo que a produção desta se torna a principal suspeita de ser a autora do objeto.

Como tudo na existência, o que pode ser usado para o "bem" é quase inevitavelmente usado para o "mal". O mesmo processo que elogiei acima na parcial resolução do mistério do monólito do Utah é exatamente o mesmo que faz com que os anti-vacinas "descubram" que estas fazem "muito mal". Ou que os hipocondríacos "dr. Google" ponham em causa dezenas de anos de conhecimento científico e achem possível haver "medicinas alternativas" (uma contradição entre termos evidente). E nem vou referir os "Flat earthers."....

Uma coisa que o ser humano tem uma enorme capacidade de fazer é reter as coisas "más" e esquecer as coisas "boas". Fiquemos ainda nas redes sociais, que o ex-presidente Barack Obama resolveu esta semana chamar de "a maior ameaça às democracias".

Demos de graça Obama estar possivelmente agora, com esta guerra às redes sociais, a tentar justificar o Nobel da Paz que lhe deram por qualquer misteriosa razão -- o único caso conhecido na História de um Nobel apriorístico.

Demos ainda de graça que quando Obama foi eleito para o segundo mandato, o Facebook, que aparentemente tanto despreza agora, já tinha mil milhões de utilizadores e que grande parte da sua imagem pública, então como agora, se faz à conta, adivinhem, das redes sociais.

Sim, é verdade que é nas redes sociais que os movimentos de desinformação e as teorias de conspiração ganham um volume como nunca. Sim, só que (e esta é a parte que é preciso não esquecer) o mesmo acontece com tudo o mais!

Como se demonstrou nas últimas eleições presidenciais, Donald Trump, o Twitter, as fake news, etc. não impediram Joe Biden de vencer com a maior votação de sempre. E se Trump ganhou em 2016 contra a candidata do partido de Obama, se calhar foi mais por demérito desta força política (a começar pela escolha da mesma e dos erros de campanha), do que pela utilização dos fatores acima, sr. ex-presidente dos EUA que não se importava nada das "redes" quando andavam repletas de cartazes a dizer "Yes we can" e variações sobre o tema.

Obama conseguiu fazer regressar a ideia de que a política podia ser cool -- especialmente depois de oito anos de George W. Bush. E fê-lo muito apoiado na comunicação online e, em especial no seu segundo mandato, mesmo com um Congresso bloqueado pelos republicanos -- em que pouca legislação conseguia passar --, manteve essa aura dada a sua personalidade, a sua atitude, mas também a forma como usou as redes sociais. Ou as fotos na Casa Branca com Michelle e os cães de água no Instagram de repente não contam?

Mas curiosamente, já poucos se lembram disso -- a memória do ser humano é muito seletiva.

Isto porque estamos prestes a ter três vacinas diferentes contra a covid-19, resultado de abordagens científicas diferentes.

Pfizer, Moderna e Astrazeneca, em concorrência, mas cumprindo as boas práticas científicas, criaram em tempo recorde soluções de combate ao SARS-cov-2 com resultados que, ao que os estudos clínicos indicam, permitem ter esperança que possa haver uma solução para a pandemia durante o próximo ano.

Isto é a ciência a funcionar normalmente. A investigação é realizada por laboratórios em conjunto com universidades, os resultados são publicados e avaliados pelos pares, as conclusões são testadas, todo o processo é revisto e fiscalizado por entidades independentes.

Sem a troca livre de informação, sem os especialistas fora do processo de criação e testagem poderem avaliar o que está a ser feito, é impossível ter-se a mínima noção de segurança relativamente ao produto.

É por isso que não podemos confiar no que a Rússia apresenta como a vacina "de 95% de eficácia" Sputnik V.

Por outro lado, sem verdadeira concorrência entre laboratórios, não seria possível o mundo estar prestes a ter à disposição três alternativas para combater a doença. A mais sofisticada, a da Pfizer, precisa ser armazenada a uma temperatura de -80ºC, o que a torna complicada para ser administrada em países sem infraestruturas de criogenia capazes de chegar a estas temperaturas -- a maioria de África é o exemplo comum, mas basicamente é todo o mundo fora de cidades com centros de investigação científica.

Já a vacina da Moderna pode ser conservada a -20º, ou seja, num congelador comum.

Quando à da Astrazeneca, criada em parceria com a Universidade de Oxford, pode ser armazenada a 2º, o que a torna a melhor candidata para distribuição mundial, como escreveu esta semana a Economist. O problema é que por se tratar de uma vacina de vírus inativo, pode ser complicado produzi-la em quantidade suficiente no curto tempo necessário.

Há ainda duas outras vacinas a ter em conta, ambas chinesas. Como é habitual na variante do comunismo chinês, foram desenvolvidas numa espécie de concorrência dentro do próprio estado: um laboratório ligado diretamente ao governo, outro com maior independência, mas totalmente "supervisionado" pelo partido.

A investigação foi secreta, os primeiros testes idem, os resultados da segunda fase foram parcialmente publicados no ocidente.

Depois, fizeram-se contactos com alguns países mais ou menos "amigos" (Brasil incluído) para começarem a terceira fase em grande escala da vacinação. Isto depois de milhões de chineses terem sido injetados com uma outra versão da vacina -- supostamente nenhum efeito secundário foi detetado, segundo a propaganda, perdão, a comunicação oficial do país.

O governo chinês enviou entretanto para a prestigiada revista científica Lancet os resultados de um dos estudos para que seja revisto pelos pares. Este foi publicado e parece de facto ser promissor.

Possivelmente, ambas as vacinas são tão boas quanto as da Pfizer, da Moderna ou da Astrazeneca. Mas podemos mesmo confiar que assim é? Depois de todo um processo sem ponta de transparência em que só nos é mostrado o resultado final?

Se funciona, não quero saber como lá chegaram, poderão dizer.

A saúde é demasiado importante para uma atitude tão simplista. Até porque há uma dúvida metódica que nunca deixará de me assolar. Uma questão que foi encapsulada numa frase do oncologista norte-americano Samuel Broder, diretor do Instituto Nacional de Oncologia dos EUA entre 1989 e 1995:

"Se estivéssemos dependentes do [SNS] para curar a poliomielite através de um programa dirigido centralmente (....) teríamos hoje o melhor pulmão de aço do mundo, mas não haveria uma vacina para a polio."

Outro exemplo: a URSS ainda conseguiu andar pelo espaço, mas nunca chegou à Lua. Os americanos fizeram-no em foguetões "de dois milhões de peças -- todas construídas por quem propôs preços mais baixos", como disse o astronauta John Glenn. E, no fim, o projeto espacial -- e o programa nuclear -- ajudou de sobremaneira a levar o regime planificado e centralizado soviético à falência.

Sem liberdade e concorrência não há inovação, sem inovação mata-se a imaginação, sem imaginação não há ciência. Sem ciência não pode haver nações nas quais valha a pena viver. Se algum dia chegarmos a esse ponto, mais valeria o futuro ser das cabrinhas.

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