O holandês, os discípulos e a morte lenta
Dijsselbloem disse umas boçalidades. Umas boçalidades que, por vezes, uns copos a mais desencadeiam. Porém, há que admitir que mesmo com uma carraspana das antigas, ser racista xenófobo e misógino não é algo respeitável. Mas, conhecendo nós as manigâncias dos néctares, podemos dar um desconto. O mais provável é que o cidadão, depois de o álcool ser substituído pelo gosto a papel de música na boca e dor de cabeça, bata no peito e declare que teriam sido os copos a falar, uma espécie de Dijsselbloem de Schäuble, ou seja, um boneco de ventríloquo.
Só que o presidente do Eurogrupo não estava bêbado. E não parece que existam resquícios de álcool no sangue das pessoas que acham que as razões da crise financeira se devem a alguns países europeus terem vivido acima das possibilidades, uma maneira mais polida de dizer que se andou a gastar em copos e mulheres - esqueçamos a forma como o holandês pensa que se estabelecem relações com pessoas do sexo feminino. Aliás, um dos efeitos das declarações do holandês, foi nesta semana termos podido constatar uma espetacular inflexão nas convicções de muitíssimos homens e mulheres. Aqueles que encheram a boca com os desmandos dos perdulários beneficiários do RSI, dos malandros que preferiam receber o subsídio de desemprego a trabalhar, a destratar os supostos compradores de plasmas e carros de luxo, num país que tem um milhão de trabalhadores a receber o salário mínimo e onde o ordenado médio são cerca de 780 euros mensais, e que agora apareceram a revoltar-se com o bom do Dijsselbloem. Ao menos o discurso do homem deu para nos rirmos com tanto colunista e político a desdizer hoje o que jurava ontem.
Esqueçamos as boçalidades do holandês. O pior do seu discurso é a ignorância sobre as origens da crise por que passamos e continuamos a passar. E prefiro acreditar que é ignorância. Como sabemos, o holandês e os seus, insisto, até agora discípulos portugueses desprezam o que foi a crise financeira internacional e o efeito que estas crises têm nos países mais frágeis - e que por uma razão ou outra, estes ou outros, sempre existirão. O papel determinante do desmando das instituições financeiras norte-americanas, a arquitetura institucional do euro que, de facto, fez que as economias dos países europeus mais fortes e exportadores crescessem e as dos mais frágeis estagnassem, o que as taxas de juro baixas produziram nos tecidos económicos, o que foram os incentivos a um maior endividamento em economias como a nossa em que as empresas estão endemicamente sobre-endividadas, foi tudo praticamente esquecido face à explicação fácil do gastar acima das possibilidades ou, lá está, copos e mulheres.
Agora, pense-se que o nosso holandês é uma das mais importantes figuras do projeto europeu. A pergunta parece óbvia: como é possível acertar na solução quando não se percebeu o problema? Nada do que disse o presidente do Eurogrupo é novidade e muito menos é desconhecida a sua origem ideológica. Ele é social-democrata, logo, um homem de esquerda. Mais, o seu discurso pretendia defender que a sua visão era a que melhor defendia a linha social-democrata.
Ou seja, somos pela enésima vez recordados que o que divide a Europa está muito longe de ser uma cisão ideológica clássica esquerda/direita. A divisão está feita em redor de preconceitos, de moral e de interesses dos vários eleitorados nacionais. Mais uma vez trago à colação os nossos apoiantes locais da linha Schäuble. Foi dito e redito por eles que quem não alinhava pela tese do "viver acima das possibilidades" não passava de um esquerdista radical. E isso era dito mesmo quando era claro que a divisão era entre quem defendia uma tese punitiva de origem moral sobre os países periféricos, que só queriam coisa e tal e vinho verde, e quem gastava mais um bocadinho de tempo a analisar o que de facto se tinha passado e se baseava em factos e estudos e não em dichotes e slogans. O extraordinário foi assistir a pessoas que vivem neste país, que deviam conhecer a nossa realidade a vestir a pele dos que acham que merecemos ser castigados por sermos uns valdevinos. Assim, incorporado por nós o discurso, foi ainda mais fácil convencer os eleitorados do Norte da Europa de que estariam a subsidiar desperdício e a preguiça, quando a realidade é que as razões da nossa crise estão fortemente ligadas a fenómenos económicos que os beneficiaram e que, de facto, nos prejudicaram - bem como as respostas.
Dijsselbloem disse o que disse na semana em que se comemoram os 60 anos da assinatura do Tratado de Roma. Não há dúvida, não havia melhor altura para mostrar no que o projeto europeu se transformou. A ideia de solidariedade entre os povos está em grande parte mudada para um conflito permanente entre os interesses de cada uma das comunidades; os preconceitos morais continuam a crescer e a crise, em vez de os diluir, fê-los crescer; mas o maior problema é a sensação cada vez mais profunda de que não há noção de destino comum. E sem esse sentimento qualquer projeto do género do europeu está condenado ao desaparecimento.
Hoje por hoje, a União Europeia ainda é algo para que se olha e se sente que mesmo com todos os problemas ainda vale a pena, mas continuando no caminho que tem calcorreado sobra a pergunta: até quando?