Desculpe, Paulo Pedroso
Um dia saber-se-á o que, de facto, aconteceu." Este é um dos comentários que mais vezes ouvi, e ouço, sobre o caso Casa Pia.
Bem sei que o caso foi julgado e que há condenados a cumprir pena, mas ninguém estará esquecido daqueles tempos. Das listas de "suspeitos" em capas de jornais, da enorme boataria que rodeou o caso, da divulgação de escutas à la carte, dos lancinantes editoriais, das absurdas confissões, de gente que sabia tudo mas se tinha esquecido de contar, do aparecimento e desaparecimento das casas onde se deram e não deram os abusos. Lembro-me particularmente bem das sentenças e acórdãos deste caso - mais que não fosse por serem bem mais recentes. Peças processuais em que as opiniões se transformam em factos, de juízos vagos sobre como se pensa que as coisas devem ter acontecido, de contradições aberrantes, de acontecimentos que não casam uns com os outros, mas sobretudo não me sai da memória a frase "ressonância da verdade". A expressão que os desembargadores da Relação de Lisboa admitiram nunca terem visto ser utilizada na jurisprudência, mas que consideraram atendível e que foi, no fundo, a questão decisiva para várias condenações - nomeadamente a de Carlos Cruz. De facto, foram magistrados a condenar por algo que lhes soava a verdade, dito de outra forma, tiveram uma fezada, cheirou-lhes.
A aberração "ressonância da verdade" não foi a única novidade, muito longe disso, que o caso Casa Pia trouxe para a nossa comunidade. Este processo iniciou uma nova era no nosso país. Foi aí que se oficializou uma nefasta e perigosa colaboração entre, especialmente, um tabloide e alguns setores da Justiça. Não penso apenas naquilo que se tornou um filão para essa espécie de jornal: os assassínios de carácter, as parangonas que depois são negadas por pequenos apontamentos em pé de página, transcrição de escutas, exibição de interrogatórios judiciais e um sem-número de vilanias que se tornaram comuns. Foi-se muito mais longe do que isso. Começou a ficar claro que a troca de informações entre tabloides e alguns setores da Justiça visava condenar pessoas na praça pública para basicamente se atingir dois objetivos.
O primeiro é fazer na opinião pública o que não se é capaz de fazer nos tribunais. Se não se consegue pelos meios legais, condena-se, sem direito a recurso, na praça pública. Nada mais fácil do que fazer uma primeira página com uma informação vinda, por exemplo, de alguém do Ministério Público e mostrar que aquele cidadão é suspeito de alguma coisa. Poupo o leitor ao que depois se segue, é bem conhecido, em resumo, a presunção de inocência passa num instante a presunção de culpabilidade.
No mesmo sentido, as regras do Estado de direito obrigam ao cumprimento de vários princípios - que, por definição, são a base desse Estado de direito - e, não sendo possível ultrapassá-los legalmente, visa-se criar a perceção de que estes são um entrave à busca da verdade que alguns julgam saber. Aliás, isto fez florir a indústria dos colunistas que dizem a "verdade", os justiceiros de teclado ou palanque televisivo. Gente que conhece a lei e as bases do Estado de direito - um colunista desse género chama a quem as defende "enunciadores de princípios abstratos"- mas esquece isso tudo em troca de popularidade e outro tipo de compensações. Claro que há quem atropele tudo o que é princípio por simples ignorância.
O segundo é criar na própria Justiça a quase impossibilidade de julgar contra a perceção que se gerou na opinião pública. Conseguindo-se criar na opinião pública a convicção de culpabilidade através de campanhas negras, transcrevendo escutas, exibindo interrogatórios, mostrando partes de peças processuais que não sabemos de que forma são escolhidas ou que critério foi utilizado para as exibir. Ou seja, fazendo tudo o que uma investigação ou um julgamento não pode fazer e que deturpa em absoluto a busca da verdade.
A Justiça vê-se assim no dilema de julgar segundo os cânones e ser vista como uma aliada dos presumíveis criminosos ou julgar de acordo com o que os investigadores, acusadores e juízes de tasca fazem.
E assim se destrói um sistema de justiça.
Tenho pouquíssimas dúvidas de que o caso Casa Pia tem várias vítimas de decisões judiciais erradas e de difamações soezes - não, não esqueço as crianças que foram vítimas de abuso e que, arrisco dizer, não viram, pelo menos, alguns dos seus verdadeiros abusadores ser condenados. Uma das vítimas foi Paulo Pedroso.
Para quem está esquecido, Paulo Pedroso foi detido de forma espetacular, indo o magistrado acompanhado de equipas de jornalistas e câmaras de televisão (algo que se tornou, como é sabido, corriqueiro) a 22 de maio de 2003 e esteve em prisão preventiva durante cinco meses. Pouco tempo depois, o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa decidiu não acusar Paulo Pedroso por existirem "sérias dúvidas" sobre a identificação como abusador por parte das vítimas. Entretanto, a quantidade de "informação" sobre a culpabilidade do antigo secretário de Estado foi amplamente difundida. O nome Paulo Pedroso passou a ser sinónimo de pedófilo.
Quinze anos depois de ser preso, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou o Estado português por ter mantido Paulo Pedroso preso, não sendo as razões para a sua prisão preventiva relevantes ou suficientes. O acórdão ainda diz que foi negado ao arguido o acesso a peças processuais fundamentais.
Paulo Pedroso, na sequência desta deliberação, disse que só naquele momento voltava a ser verdadeiramente livre. Elogio-lhe a compostura de hoje, como lhe invejo a capacidade de ter sobrevivido ao assassínio de carácter e ao processo vergonhoso que lhe deu cabo de parte importante da sua vida. Como membro da comunidade que o tratou de forma tão ignóbil, peço-lhe a minha parte das desculpas que lhe são devidas. Como cidadão, confesso o meu medo. O medo de ser insultado, ultrajado, acusado do mais vil dos crimes sem que pouco ou nada possa fazer pelo meu bom nome.
Paulo Pedroso foi uma das vítimas de um sistema que precisa urgentemente de ser reformado. Você, caro leitor, pode ser a próxima vítima.