A vitória dos jotinhas e os novos poderes do MP
1.Há um ano, defendi aqui que não fazia sentido demitir os secretários de Estado que tinham viajado a convite da Galp. Recordo-me do coro de gente, uma quase unanimidade, a rasgar as vestes em revolta contra a vergonha de se aceitar um convite para ver um jogo de futebol numa excursão sem o mínimo de comodidade. Sei do que falo, já fui em viagens iguais às que estão em causa.
Também me lembro de escrever que se alguém se sentia condicionado em alguma decisão por causa de uma viagem destas não tinha a mais remota capacidade de exercer qualquer cargo de responsabilidade.
Depois, o governo, em parte para acalmar os ânimos, em parte por também ir na onda instalada do político bacteriologicamente puro, em parte por estar de má consciência, aprovou legislação que, no fundo, obrigava a demitir os secretários de Estado. Uma daquelas leis que mais não fazem que não seja declarar um político incapaz de formular juízos éticos, de dizer a um homem ou mulher com enormes responsabilidades o que são regras e usos socialmente aceitáveis. Por mim, não tenho dúvidas de que se alguém precisa de um código para lhe dizer o que é uma oferta simpática ou uma tentativa de condicionamento não serve para um cargo de responsabilidade. No entanto, reconheço que esse é o atual nível de estupidificação e de moralismo serôdio.
Não nego que a crise económica tenha contribuído para um clima em que é malvisto qualquer tipo de cortesia que aparente, por muito pequena e vaga que seja, ser concessão de privilégio; também é evidente e notório que políticos houve - e provavelmente ainda há - que abusaram dos seus cargos e usufruíram mesmo de vantagens abusivas ou pior, muito pior, e que nada lhes aconteceu. Mas o atual nível de suspeita generalizada sobre a classe política é insuportável, injusta e, mais que tudo, afasta qualquer pessoa que não está para que lhe seja espetado um ferrete de aldrabão mal comece a exercer cargos públicos. A política cada vez está melhor para quem não consegue ter uma vida profissional normal na atividade privada e que está habituada a ter a sua honra posta em causa. Ótima para os jotinhas dos aparelhos partidários e péssima para os bons profissionais que gostariam de servir a causa pública. Tem de ser dito, porém, que este ambiente que leva à penalização pública de meros atos de simpatia e que exige uma moralidade de santo de altar a qualquer político teve a contribuição inexcedível dos próprios, e muito para lá dos que se passeiam pelo lúmpen. Como escrevia o David Dinis no Público, "se a classe política se pôs de cócoras fazendo leis que culpam alguém por ter vantagem, mesmo sem prova de contrapartida, não pode queixar-se de mais ninguém". Ou seja, e como no caso em questão, se o legislador deixa ao Ministério Público uma margem de discricionariedade que permite aos magistrados fazer julgamentos morais ou políticos a culpa é, em primeiro lugar, dele.
Curiosamente - ou talvez não -, o mesmo tipo de julgamentos morais que jornalistas e colunistas fazem, concretamente, a estes secretários de Estado não encontra paralelo nas suas próprias condutas. A pergunta é simples: quando um jornalista aceita uma viagem de cortesia ou vai a um concerto a convite de uma empresa, sente-se à vontade para escrever o que quer que seja sobre essa organização ou pessoas que a dirigem? E que dizer quando é o próprio Sindicato dos Magistrados do Ministério Público a aceitar patrocínios de empresas privadas, devemos pensar que está condicionado em relação a possíveis ações sobre essas companhias ou membros dos órgãos sociais?
O afastamento de Rocha Andrade, João Vasconcelos e Jorge Costa Oliveira é, em primeiro lugar, a vitória dos falsos moralistas e da mediocridade jotinha.
2. Seja como for, há um ano, os secretários de Estado e o primeiro-ministro julgaram que não havia motivo para demissões. Pensaram, com certeza, que os atos cometidos não eram atentados à ética - ou não suficientemente graves - e muito menos constituíam qualquer tipo de ilegalidade. Dado que se dá como adquirido que nessa investigação não se encontrou nada mais que já não se soubesse meia dúzia de dias depois do sucedido, pergunta-se: por que diabo agora os secretários de Estado se demitiram e, presume-se, o primeiro-ministro não os pressionou para que ficassem? A resposta é conhecida, porque foram constituídos arguidos - esqueçamos que esse pequeno detalhe do Ministério Público ter levado um ano a descobrir umas viagens feitas à frente de toda a gente e que os viajantes imediatamente admitiram nos pode levar a pensar que operações de alguma complexidade levarão dezenas de anos.
Segundo a generalidade dos analistas, não é politicamente sustentável ter três membros do governo sob o estatuto de arguido. Seguindo esta tese, o Ministério Público tem o poder efetivo de demitir membros do governo utilizando um estatuto que serve para defender o cidadão. Pois, importa lembrar que o estatuto de arguido serve para proteger os direitos do cidadão durante o processo. Onde isso vai, não é? E não vale a pena fazer demagogia com o assunto e generalizar: uma coisa é uma acusação por causa de um crime grave outra é esta. As suspeitas não são todas iguais.
Não seria fácil, admito, para o governo gerir politicamente a situação, mas considero muito mais perigoso, para o futuro, deixar ao Ministério Público julgamentos que só o poder político pode fazer.