De que vale pensar uma década sem garantia de consenso político?
Se há coisa de que Portugal não se pode queixar é de falta de pensamento e planeamento estratégico, de ideias para futuros soalheiros e risonhos. O que tem faltado é capacidade, seja política ou financeira, para que esses planos possam dar o salto do papel para o país.
Na semana passada, em entrevista ao Dinheiro Vivo e à TSF, Pedro Nuno Santos dizia exatamente isso, confessando qualquer coisa como "não imaginam a quantidade de projetos e planos [por executar] que temos lá no ministério".
Ideias não têm faltado. Já a capacidade de execução é toda uma outra conversa, normalmente dependente de entendimentos políticos alargados entre PS e PSD. São os famosos acordos de regime, com uma história de 46 anos de raros sucessos. Pode muito bem ser esse o principal problema do documento apresentado hoje por António Costa Silva.
As 142 páginas leem-se bem, as propostas estão bem fundamentadas e o caminho defendido para o país é claro, preciso e bem estruturado. Mas, será que este documento tem capacidade de conquistar algum consenso político? Terá sido pedido esse cuidado a Costa Silva?
O presidente da Partex e consultor do Governo com tarefa única que acaba de cumprir, defendia-se indiretamente desse pormenor, dizendo na apresentação que o trabalho dele acabava ali e que este não era, até ver, um documento do Governo. Sinalizando, no fundo, que o trabalho político começa agora.
Uma estratégia para o país, desenhada como esta com o horizonte de uma década, só fará sentido se assentar em linhas gerais que garantam o mínimo de consenso entre PS e PSD. Qual será o sentido de definir um caminho que será minado à primeira mudança de governo?
Lido o documento, há muito de consensual, passagens inteiras que podiam perfeitamente constar de um programa eleitoral do PSD (ou até do CDS). O problema mora em matérias onde é sabido que não existe qualquer consenso entre os dois lados do Bloco Central.
Frases como "a construção das infraestruturas vai ser uma alavanca da economia nacional, arrastando todo o setor da construção, dinamizando as empresas nacionais e os fornecedores de equipamentos e serviços e, consequentemente, promovendo o emprego" têm o dom de acordar fantasmas e colocar boa parte do PSD em grave choque anafilático.
Sugerir a construção de um novo eixo ferroviário de alta-velocidade entre Lisboa e Porto (sim, fala-se de uma linha de TGV), é ideia para provocar os mesmos sintomas à direita do PS, tal como as propostas de mais investimento público na rede escolar ou em habitação social.
E será que o PSD concorda com este desígnio: "vamos precisar de um Estado com uma nova natureza, mais interventivo"? Este PSD talvez, mas como estamos a falar de um período de dez anos, e outro PSD, sem Rui Rio, estará de acordo com esses objetivos?
Só mais dois exemplos. Costa Silva propõe que "o Estado, central e local, deve assumir um papel de criação de emprego social, mesmo que esses postos de trabalho tenham fraco valor económico, mas elevado valor social". Tomando boa nota de que alguém, a pedido de um Governo socialista, anda a dizer e escrever "qualquer coisa de esquerda", será que o PSD assina por baixo? E Rui Rio estará confortável com os planos para mais apoios do Estado no campo da Cultura?
Seria bastante mais útil à discussão que o PSD largasse o fraco argumento de que o documento não tem uma quantificação do peso orçamental de cada medida, até porque isso será para outras fases e claramente não foi pedido esse trabalho a Costa Silva, e começasse a enumerar áreas onde poderá haver acordo ou não com o que ali está proposto.
Há agora trabalho político a construir sobre este documento e está nas mãos de António Costa e do Governo optar entre o que vai tentar executar e o que vai ser enterrado no enorme cemitério das boas ideias estratégicas e estruturais para o país.
Reste o que restar do bom trabalho de António Costa Silva, há um dado que parece claro. Esta estratégia só terá sentido, só será, de facto, "para a década", se o PS conseguir construir pontes com o PSD. Qualquer outra solução para viabilizar o que é proposto vai resultar em projectos parados a meio ou inflexão de estratégia à primeira mudança de cor do governo.
Portugal tem um histórico demasiado longo de projetos estruturantes abandonados a meio por birras ou teimosias políticas - alguns com custos sérios para o país -, para que se arrisque repetir a história. Há exemplos a mais para que não se tenha aprendido nada com eles.
Basta que PS e PSD sejam tão pragmáticos na análise do que é proposto por Costa Silva como o foram hoje na aprovação da ideia de Rui Rio em relação aos debates quinzenais com o primeiro-ministro - acabaram e passou a ser apenas um debate a cada dois meses. Gostava que explicassem como é que acharam boa ideia, numa altura em que o país se prepara para receber uma "pipa de massa" da UE, boa parte a fundo perdido, e em que a pressão para execução desses fundos vai aumentar brutalmente, reduzir em 75% as hipóteses de escrutínio direto do primeiro-ministro pela oposição, no Parlamento.