Se vives entre Moscovo e Pequim é bom que entendas russos e chineses

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"Um homem não nasce sábio. Ele torna-se sábio após ter visto e passado por muitas coisas, o que o coloca em condição de distinguir o certo do errado", escreveu o poeta Abai, figura maior da literatura cazaque, de quem se celebra agora os 175 anos do nascimento. Educado de início numa madrassa islâmica e depois numa escola russa (era o tempo do Império czarista), falava árabe, persa e outras línguas orientais. Também dominava o russo, claro, e traduziu para o cazaque obras de grandes escritores como Pushkin.

Faz um ano o país de Abai elegeu um novo presidente, apenas o segundo de um Cazaquistão que ganhou a independência em 1991, com o fim da União Soviética. Para termos uma ideia dos desafios de Kassim-Jomart Tokayev pensemos em John Adams quando sucedeu a George Washington, o pai da independência dos Estados Unidos, ou se gostarmos muito de história medieval no nosso Sancho I quando herdou o trono de Afonso Henriques. Sim, Tokayev tem a dupla missão de liderar o nono maior país do mundo na sua caminhada para o desenvolvimento, mas também tem o encargo de preservar o legado de Nursultan Nazarbaiev, que manteve o Cazaquistao afastado das convulsões que afetaram muitas ex-repúblicas soviéticas, até na Ásia Central, e mantém o estatuto de pai da independência.

Visitei há uns meses o Cazaquistão, incluindo Semei, a região de onde Abai é originário. E vi na nova capital, antes Astana e agora chamada Nur-Sultan, uma admirável coexistência entre cazaques étnicos e cazaques de outras comunidades, como a russa, a usbeque e até a coreana. Pela sua geografia, o gigante Cazaquistão é um país a cavalo entre a Europa e a Ásia, e a expressão a cavalo é bem apropriado quando se fala em estepe e num povo que se considera descendente de Gengis Khan. Mesmo que se realce que só um décimo do território fica para cá dos Urais, portanto na Europa, mesmo assim é um pedaço tão grande como a Polónia ou três vezes Portugal. Também a história faz do Cazaquistão um país que se sente confortável nesta encruzilhada entre Ocidente e Oriente. E é uma terra tolerante onde um português e uma casaque, como um casal que conheci, podem criar uma menina chamada Alma, nome precioso que faz sentido na cultura das duas famílias.

Ora, o futuro do Cazaquistão depende de ser capaz de manter a coexistência entre as comunidades ou nacionalidades, mais de uma centena, através de uma prosperidade partilhada. Depende isso da capacidade para ultrapassar a dependência do petróleo. E por sua vez tal exige que se encaixe bem num mundo com vários polos de poder, tantas vezes com interesses antagónicos.

Na tomada de posse a 12 de junho de 2019, Tokayev fez um discurso social, prometendo atenção muito especial ao descontentamento que causam as desigualdades. Mesmo com o impacto negativo na economia que tem a atual pandemia, o compromisso de desenvolvimento mantém-se intacto, pois o Estado soube gerir os recursos dos bons tempos para usar nos menos bons. E reformas políticas de forma a tornar mais competitivo o sistema partidário também se incluem nas promessas do presidente, sensível às críticas.

O curioso, e bem mais do que isso, é que o presidente cazaque podia ter discursado em russo, chinês ou inglês e com perfeita fluência nos três idiomas. Formou-se em Moscovo, estudou em Pequim e foi diplomata tanto na capital chinesa como em Singapura. Também foi alto funcionário das Nações Unidas. Ou seja, está em condições de conduzir o Cazaquistão entre a Rússia e a China, os dois grandes vizinhos, mas também manter pontes com o Ocidente, seja União Europeia, sejam os Estados Unidos. É capaz de ouvi-los, de entendê-los.

Para quem aprecia este país de 19 milhões de habitantes, que entre os muitos méritos que tem está o ter-se libertado das armas nucleares e professar um islão moderno e aberto, é encorajador pensar que a liderança está entregue a alguém como Tokayev que, e aqui parafraseio o poeta Abai, viu e passou por muitas coisas.

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