Quando um rei é o elefante na sala
Cruzei-me com Juan Carlos e Shakira quase em simultâneo, em San Salvador, no Sheraton, um daqueles hotéis de cinco estrelas em cujos lobbies, durante certos eventos, as fronteiras entre as celebridades e os comuns mortais se dissipam, em especial se o mortal for um jornalista estrangeiro em reportagem. Não fosse Luís Amado, então ministro dos Negócios Estrangeiros, me acenar logo que entrei, mostrando onde estava sentado com o primeiro-ministro José Sócrates, e ainda teria pensado se não valia a pena tentar uma entrevista com a cantora colombiana, já mítica em 2008. Mas em relação ao rei de Espanha nem tal me passou pela cabeça: sabia que não era suposto os tais comuns mortais (neste caso, jornalista ainda pior) dirigirem a palavra ao monarca, quanto mais esperar que este lhes respondesse.
Talvez hoje com Filipe VI, que até se casou com uma jornalista, as formalidades sejam menores, mas com o pai era impossível imaginar ter ali alguém que não um inalcançável Borbón, um descendente de três séculos de reis espanhóis, também de Luís XIV, pois antes de haver os Borbóns havia os Bourbons. Sei que alguns portugueses que conheceram Juan Carlos jovem, quando passava o verão na casa dos pais em Cascais, veem nele um amigo, e recordam sobretudo o camarada de brincadeira, mas para o resto da humanidade tratava-se de um trineto do trineto (fiquemos por aqui) do Rei-Sol. Trata-se, retifico.
Sempre me senti republicano, mas não hesito em reconhecer que há monarquias felizes, como as do Norte da Europa, ou monarquias que são o cimento de uma nação, como a marroquina ou a Jordana. E se há monarca que admirei (admiro?) é Juan Carlos. Já li muito sobre ele, mas admito que tudo começou com uma longa entrevista em livro a José Luís de Villalonga, também conhecido como o marquês vermelho por, apesar de pertencer à nobreza, ter desafiado Franco, o generalíssimo que durante quase 40 anos mandou em Espanha. É uma biografia autorizada, simpática, mas não menos verdadeira por isso. E Juan Carlos revela-se nela como um democrata, alguém que em vez de governar com mão de ferro, como fez Francisco Franco, um país empobrecido e semifechado ao mundo, preferiu ser o monarca constitucional de uma nação moderna, aberta e ambiciosa.
D. Juan, conde de Barcelona, foi filho de rei e pai de rei. Franco, o militar que derrotou a República na guerra civil de 1936-1939, não o suportava, e era correspondido na perfeição. Mas o conde e o caudilho entenderam-se sobre o futuro de Juan Carlos, pelo primeiro visto como o salvador da monarquia, pelo segundo como o perpetuador do regime católico-conservador que, ao contrário do salazarismo em Portugal, deveu grande parte do sucesso na chegada ao poder ao apoio de alemães e italianos, de nazis e fascistas.
Quando Franco morreu, em 1975, Portugal há mais de um ano que se libertara da ditadura. Em Espanha, sem revolução, tudo foi mais lento. Juan Carlos queria ser o herdeiro dos reis de Espanha e não o herdeiro de Franco, mas isso não era coisa que se gritasse. Houve muitas conversas secretas, como ouvi um dia contar numa livraria de Madrid Santiago Carrillo, um veterano da Guerra Civil Espanhola, histórico dirigente comunista, que negociou em 1977 a legalização do PCE.
Saltemos para 2020. Em Espanha, governa uma coligação de esquerda. E o vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias defende o regresso da república, que seria a terceira, depois de uma efémera experiência no século XIX e do período de 1931-1939. Em paralelo, a Catalunha tem um chefe de governo regional que não só é republicano como é independentista. Ambas as posições são legais, desde que exercidas no respeito da Constituição de 1978, que enterrou de vez Franco (a tentativa de golpe de 1981 foi um ato de desespero, e mesmo assim Juan Carlos serviu-se dela para dar a Filipe uma magistral lição de como ser rei em democracia, acordando o filho de 13 anos para o ver dar via TVE ordens aos militares para voltarem aos quartéis).
Tão popular que muitos espanhóis, sobretudo socialistas, se diziam juancarlistas mas não monárquicos para justificar o seu conforto a viver com um rei, Juan Carlos perdeu o brilho quase de um momento para o outro. Naquele dia na capital de El Salvador, onde participava na Cimeira Ibero-Americana, ainda era o colosso (o célebre "Por qué no te callas?" ao venezuelano Hugo Chávez tinha sido na cimeira anterior) e sem rival naquele palco desde que Fidel Castro, doente, deixara de sair de Cuba. Depois, em 2014, abdicou. Para salvar a monarquia, percebeu-se.
Juan Carlos foi rei, mas nunca santo (e mesmo esses por vezes tiveram vidas complicadas, ou pouco castas, pensemos em Santo Agostinho). Que teria amantes pouco impressionava um povo de latinos, mas que com uma delas fosse à caça aos elefantes em África, em 2012, pico da crise económica, caiu mal e não só entre os desempregados, que chegaram a ser 27% dos espanhóis.
Agora, por causa de uma conta da tal Carina, a justiça suíça e depois também a espanhola começaram a investigar fundações ligada ao rei emérito e que teriam sido financiadas, entre outras situações, por dinheiro saudita. Filipe VI, sem dar sequer o benefício da dúvida ao pai, desligou-se de qualquer herança e tirou a subvenção pública ao ex-monarca. Quer salvar a honra pessoal, também a coroa que gostaria um dia de deixar a Leonor, a mais velha das duas filhas.
É triste que Juan Carlos se tenha tornado o elefante na sala para a monarquia espanhola. Mas a força desta, e de Filipe VI, vem do compromisso que teve e tem com a democracia. E esse é um legado deste rei emérito, já nada colossal, quase comum mortal, mas mesmo assim com um papel inapagável na construção da Espanha do século XXI, um país que quer estar à altura da sua história.