Quando foi a última vez que leu Dostoiévski?
Visitei uma vez a casa onde Dostoiévski viveu em Semey, hoje museu dedicado ao genial escritor russo. Talvez nunca tenha ouvido falar desta cidade do Cazaquistão, muito mais perto da fronteira chinesa ou da Mongólia do que de Moscovo. Ou talvez até tenha ouvido falar do Polígono de Semipalatinsk (a umas poucas horas de carro da atual Semey), local onde a União Soviética testou em 1949 a sua primeira bomba atómica, já em plena Guerra Fria.
O autor de Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov viveu ali cinco anos em meados do século XIX depois de cumprir pena na Sibéria por conspiração contra o czar. Em Semey, que se chamava então Semipalatinsk, Dostoiévski escreveu e casou-se. Quem me o contou enquanto mostrava o museu foi uma jovem guia de cabelo louro, da comunidade russa que vive no Cazaquistão. Mas quem me sugeriu visitar a casa foi um responsável da câmara, um cazaque de olhos semirrasgados como é típico deste povo da estepe, de língua turquica. Tinha orgulho em que a ilustre personagem estivesse ligada à história do país, independente desde 1991. E, claro, esse cazaque sabia russo, pelo que tinha lido Dostoiévski no original.
Hoje é Dia da Europa e por isso falo desta Semey que senti europeia. O próprio Cazaquistão divide-se entre Europa e Ásia, e é tão grande que os 10% de parte europeia formal são do tamanho da Polónia. Um dia escrevi aqui ter dificuldade em perceber onde começa e onde acaba o continente que é o nosso, certo de que limitar-me à União Europeia é pouco (ainda mais depois do Brexit), mas mesmo a fórmula clássica do Atlântico aos Urais parece-me demasiado redutora. Afinal, não é Vladivostok, ali junto à Coreia do Norte mas com o seu café Zuma, tão Rússia como é Moscovo?
O recém-falecido George Steiner falava dos cafés como símbolos da cultura europeia, daqueles frequentados por Pessoa em Lisboa até aos de Isaac Babel em Odessa. Também há cafés em Semey. E até em Nur-Sultan, a moderníssima capital dos cazaques, povo que conseguiu ter uma relação com os russos, tanto na era czarista como na soviética, capaz de lhes trazer a ciência e a tecnologia ocidentais sem perderem a sua cultura de origem. No Cazaquistão, a vitória soviética sobre os nazis, há 75 anos, é motivo de grande celebração, tantos combatentes deram aquelas terras ao Exército Vermelho.
Continuemos a falar de cafés e da alma europeia, mesmo que na periferia próxima. Também na Turquia eles fazem parte do quotidiano, a começar por Istambul. E se o Império Otomano, conquistador, sempre se mostrou fascinado com a Europa, foi Atatürk, fundador da República e campeão do laicismo e da emancipação feminina, que decisivamente escolheu qual era o continente a que pertencia o seu país. Já em Israel, em teoria Ásia, que dizer dos cafés de Telavive, cidade fundada por pioneiros judeus que trouxeram tanto da Alemanha na bagagem que criaram um paraíso da Bauhaus à beira do Mediterrâneo?
Falo do Mediterrâneo porque se umas vezes divide, como hoje, noutras não. No tempo romano, as duas margens faziam, aliás, parte do mesmo mundo. Falo do Mediterrâneo também porque se o nome do continente vem de um mito grego (ó Grécia, tanto que te devemos) já a princesa raptada pelo touro, a bela Europa, é fenícia. E tantas e tantas vezes foi reinterpretado o mito pelos artistas, mas a nossa capa de hoje do suplemento 1864 é de Nadir Afonso, há uns anos, a convite do DN.
Tal como o Mediterrâneo, também o Atlântico dividiu e uniu ao longo da história. Nos últimos 500 e tais anos tem unido, graças aos descobrimentos, primeiro pelos portugueses e pelos espanhóis, depois também por ingleses, franceses e holandeses. Saltemos às Américas. E vejamos como ali tanta Europa há, seja em Boston, das mais antigas cidades dos Estados Unidos, seja em Montreal, onde a cultura francesa resiste, resiste, resiste ao sucesso da anglo-saxonização da América do Norte. Foi desta Europa além-mar americana e canadiana, também da Austrália e da Nova Zelândia, que veio a ajuda tão necessária a Churchill e a De Gaulle para derrotar de vez o nazismo, um mal incrível, tão mais incrível por ter dominado durante 12 anos esse colosso da cultura europeia que é a Alemanha, a mui admirável Alemanha de Goethe e de Beethoven.
E se há também um pouco de Europa em África e na Ásia, onde a colonização deixou memórias de sofrimento mas também línguas e religiões agora locais, sobretudo quero falar da América do Sul, da pastelaria Colombo no Rio de Janeiro, tão antiga que já era cinquentenária quando o Brasil enviou soldados para combater Hitler, ou no Tortoni, em Buenos Aires, onde tenho quase a certeza de que vi há cinco ou seis anos um argentino a ler Dostoiévski com tanto gosto como lê Borges ou Cortázar.