O tempo da Imobiliária América já passou, mas Trump não é o único a cobiçar a Gronelândia
Uma boa ideia se vier de Thomas Jefferson, uma estupidez se for Donald Trump a defendê-la? Em 1803, os Estados Unidos compraram a Napoleão um vasto território a oeste do Mississipi que em tempos recentes tinha andado a passar de mãos francesas para espanholas e novamente para francesas. E o negócio ficou para a história como a Louisiana Purchase, mesmo que abrangesse 15 dos atuais 50 estados. Trump, sucessor longínquo de Jefferson na Casa Branca, terá, segundo o The Wall Street Journal, andado a falar sobre uma eventual compra da Gronelândia, uma ilha gigantesca na América do Norte, povoada por umas dezenas de milhares de esquimós mas administrada pela Dinamarca. E, assim que se soube da ideia, o mais fácil foi pôr nela o rótulo de estúpida. É um juízo demasiado apressado. Já falaremos de como a China entra nisto tudo.
É certo que os tempos da Imobiliária América, quando os Estados Unidos cresciam mais por aquisição do que por conquista, já lá vão. Mesmo assim é impressionante a lista de compras: claro, a famosíssima por Jefferson à França, mas também a de Franklin Pierce ao México em 1853 (para arredondar uns territórios conquistados) ou a de Andrew Johnson à Rússia em 1867, esse Alasca que merece muitas comparações com a Gronelândia, não só na baixíssima densidade populacional a contrastar com abundantes recursos como no aspeto do valor estratégico - já se imaginou a Guerra Fria se a União Soviética tivesse herdado o Alasca dos czares? Aliás, Harry Truman tentou também comprar a ilha em 1946, logo após uma Segunda Guerra Mundial que mostrou como era apetecível para os inimigos da América, a ponto de esta ter para aí destacado tropas que destruíram todas as infiltrações nazis.
Ao contrário de em 1917, quando na era de Woodrow Wilson os Estados Unidos adquiriram as Índias Ocidentais Dinamarquesas, os governantes atuais de Copenhaga não levaram a sério a ideia atribuída a Trump. Aliás, a crescente autonomia que têm concedido à Gronelândia inviabiliza qualquer cedência da ilha, pois na realidade o objetivo é pô-la a ser governada pelos seus próprios habitantes, na esmagadora maioria esquimós, mas também alguns europeus.
Contudo, o rumo da Gronelândia não pode nunca deixar indiferentes os Estados Unidos, que lá têm bases militares. A vasta autonomia que tem hoje da Dinamarca faz, por exemplo, que a ilha não seja já parte da União Europeia, mas, por outro lado, tal como a Dinamarca, integra perfeitamente a NATO. Ou seja, desde a Segunda Guerra Mundial a segurança gronelandesa é competência dos Estados Unidos, que na base de Thule têm algumas centenas de militares.
A China, na sua busca global de matérias-primas para manter o dinamismo da economia, já pôs os olhos na Gronelândia, onde tem simpatias entre os locais, ávidos de fontes de financiamento. As autoridades da ilha são muito cautelosas, mas um antigo primeiro-ministro, Kuupik Kleist, admitia há um ano que qualquer investimento seria bom, a começar por aeroportos. Não por acaso, o veterano repórter da BBC que assinava a reportagem, John Simpson, intitulava o artigo "Como a Gronelândia pode tornar-se a base ártica da China", para grande irritação de canadianos e americanos, mas desde então os chineses desistiram de construir os aeroportos, sabe-se lá devido a que pressões...
Se já não se compram territórios como antes, e a revista Foreign Policy interrogava-se em 2012 porquê, já a Economist, sempre provocadora, escrevia há três anos que algumas crises internacionais poderiam ser sanadas se a velha fórmula ressuscitasse. Exemplos: tensão no mar do Sul da China entre Vietname e China, obtenção de saída para o mar pela Bolívia via Chile, disputa pelas ilhas Curilas entre o Japão e a Rússia. Discutir preços numa época de nacionalismos exacerbados e ouvir as populações seria o mais complicado, obviamente.
Trump talvez, como magnata do imobiliário que é, tenha tido só uma vontade súbita de comprar, pensando como ficaria para a história se fizesse crescer os Estados Unidos 20%. Teve, porém, o mérito de chamar a atenção para um território imenso, que está a perder a sua capa de gelo e que se torna tentador. A América, de qualquer forma, não deixará de vigiar a Gronelândia.