Destinos
É muito complicado saber o que é mais importante, se a partida, se o destino, se a viagem. Mas há quem à partida tenha a viagem como destino. Convidaram-me para falar num encontro de especialistas europeus em mobilidade cujo tema é o valor do tempo de viagem. Não é sobre viajar no tempo nem sobre o valor da viagem, mas sobre o valor que atribuímos aos tempos de viagem. Em rigor, é uma coisa no âmbito do workshop Future Trends and Hypotheses on the Value of Travel Time, do projeto europeu MoTiV - Mobility and Time Value, organizado em Portugal pelo especialista em transportes João Bernardino. E é no Convento da Arrábida. E chegar ao Convento da Arrábida é uma viagem que não tem um valor que se pode medir em dinheiro, nem sequer em espaço, nem muito menos em tempo.
Os modelos que estão por trás das políticas públicas de transportes, e dos planos concretos, têm muita dificuldade em valorizar esta variável. E o problema é que tudo está a mudar. Desde o aproveitamento da deslocação para trabalhar, desde os e-mails respondidos no comboio, as chamadas no carro. E o tempo de lazer no metro, a navegar no telefone, likar imagens de sushi, ver as notícias, insultar alguém no Twitter, ouvir música. Quanto vale isso? Mas a mudança breve será ainda maior. Os automóveis vão tornar-se metros em poucos anos. Se juntarmos as alternativas de mobilidade partilhada, com ubers e cabifies por todo lado, que vão tornar a mobilidade em rede na cidade em automóvel imensamente mais fácil e mais barata, com o advento do veículo autónomo, os carros vão ser metros, dizia, na medida em que seremos todos passageiros porque já ninguém vai ter nem guiar carro próprio.
Saber quanto vale em euros o tempo de deslocação do ponto A para o ponto B. Se houver uma alternativa X a 1 euro que demora uma hora e uma alternativa Y a 5 euros que demora dez minutos, quem opta pela alternativa Y valoriza o tempo de viagem em qualquer coisa como quatro euros por quarenta minutos, seis euros por hora, mas, como diria Guterres, é uma questão de fazer as contas. Mas nesses euros, sejam eles quantos forem, tem de se descontar o valor atribuído pelos passageiros ao resto que se vai fazendo enquanto se viaja. Dizem os espertos, com X, que passageiros que ouvem música valorizam menos o tempo de viagem do que os passageiros que vão a ler.
Mas não há mais valor do que quando não se vai a fazer nada a não ser viajar. Devo muito às horas que passei em autocarros, do Lumiar para Lisboa e vice-versa, e em paragens de autocarros. Em metros e estações de metro. No banco de trás do carro dos meus pais, pela Europa, sem cinto de segurança. Mas o que teve mais valor, gostava de ter contado, mas não contei, foram os quase cem mil quilómetros que já devo ter feito de comboio, sinapses, células. Ouvi uma vez um amigo dos meus pais contar que o seu pai, no Porto, com a idade avançada e o juízo diminuído, saía de casa de manhã e metia-se no elétrico e fazia as linhas do princípio ao fim, de trás para a frente e da frente para trás, até que os senhores do elétrico o devolviam, ou a família o ia buscar, já sabiam onde o encontrar. Já não recordo os outros pormenores, se era sempre a mesma linha, se eram várias, o importante é que não deve haver melhor maneira de ir deixando a terra, dentro de um elétrico, na nossa cidade, para a frente e para trás. No Tudo sobre a Minha Mãe, o pai de Rosa (?) tinha Alzheimer e era passeado pelo cão. Devo ainda mais às voltas que já dei a Lisboa. No There Is a Light that never Goes Out", Morrissey canta as angústias de quem no lugar do passageiro quer andar de carro às voltas pela cidade, que não acabem, e que não o deixem em casa, porque já não tem casa. Mas há uma luz que nunca se apaga. É só preciso encontrá-la, e guardá-la lá onde for de guardar. E isso só andando por aí. E isso não tem valor que se meça.