Meteorito educacional
Alguns livros são como meteoritos, pedaços de um outro mundo caídos no nosso. Acaba de sair um desses: As Guerras da Escolha da Escola de John Merrifield. Editado pela AEEP, Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo, trata-se da tradução de um original americano de 2001, que mantém plena actualidade. A estranheza asteróide resulta exclusivamente do seu contraste com o ambiente português.
O livro parte de uma ideia simples: os pais devem poder escolher a educação dos seus filhos. A tese parece óbvia e pacífica, mas simboliza o abismo que nos separa de outras culturas. Desde o século XVIII que boa parte da intelectualidade portuguesa, em particular aquela que capturou o controlo do sistema educativo, se alimenta do postulado iniciático: o país só funciona adequadamente se uma elite iluminada, devidamente preparada e iniciada, tomar as rédeas da sociedade. Isto é assim porque o povo é ignaro e boçal, incapaz de se governar a si mesmo, necessitando da orientação dos seus maiores. Assim, partidos políticos, da extrema-direita à extrema-esquerda, aparelhos ministeriais, tertúlias eruditas, grupos culturais e movimentos sociais sempre se consideram libertadores providenciais da miséria nacional.
Este princípio, radicalmente antidemocrático, é partilhado por várias doutrinas dominantes, maçónicas ou jacobinas, aristocráticas ou positivistas, mesmo quando se dizem igualitárias. Do absolutismo pombalino à geringonça de hoje, passando pelo liberalismo, republicanismo e salazarismo, todas as fases da vida nacional florescem neste húmus elitista. Militantes ou fidalgos, estudiosos ou exaltados, radicais ou neoliberais, apesar de violentamente opostos, comungam desta arrogância ingénua, um dos pilares da cultura oficial portuguesa dos últimos séculos. Assim, apesar da retórica, a intelectualidade nacional é profundamente antidemocrática. Temos um regime de sufrágio, mas numa cultura snob. O povo é quem mais ordena, mas apenas nos casos em que concorde com o orador.
Isso vê-se especialmente bem nos temas simples, como o deste livro. Será que os pais têm direito a escolher a educação dos seus filhos? A resposta em Portugal é claramente positiva, desde que escolham a educação que as luminárias do ministério conceberam. Há total liberdade, dentro da ditadura doutrinal dominante.
Esta tese pedante não é um exclusivo lusitano. O volume de Merrifield critica fortemente o sistema norte-americano, onde a escola pública também exerce um quase monopólio, controlado por funcionários e sindicatos de professores, "os adversários principais da escolha da escola pelos pais" (p. 158 e 188). O nosso atraso revela-se, sobretudo, na ausência de controvérsia devido a um totalitarismo asfixiante. Por cá as guerras do título nunca chegam a ser travadas, pelo que o livro nos surge como ficção científica. Apesar de partilharmos muitos dos problemas, quem vive na paz pobre da hegemonia férrea da Fenprof e antecessores vê nos capítulos descrições de combates de alienígenas.
O interesse da obra, além de revelar mundos remotos, é a denúncia das falácias de que se servem os inimigos da escolha livre da educação, mitos cómodos que alimentam corporações instaladas. Estas partem sempre da tese de que o sector é especial, exigindo uma dose forte de regulamentação, depois aproveitada para cristalizar benesses particulares. Assim, aqui como nos EUA, o aparelho escolar ganha precedência sobre as crianças, sobrepondo o instrumento à finalidade. O autor repudia abertamente este oportunismo, defendendo uma posição assumidamente extremista, mas coerente e interpelante. Os raciocínios mordazes são instrutivos até para quem não concorde com a orientação e propostas.
Apesar do tom truculento, não se trata de um panfleto dogmático, mas de um estudo sólido de um professor da Universidade do Texas, fundamentado em mais de 300 referências bibliográficas. Concedendo prioridade absoluta à escolha dos pais, Merrifield sugere um sistema abertamente competitivo, onde o Estado apoie directamente todas as crianças, colocando as escolas, estatais ou não, em igualdade de circunstâncias. "Há muito boas razões para acreditar que um sistema de educação competitivo terá um desempenho melhor do que a maioria dos mercados. É expectável que as fontes tradicionais de problemas de mercado (...) sejam raras." (p. 25). As elaborações para fundamentar esta tese, sérias e bem delineadas, estão entre os melhores contributos da obra.
O sistema educativo, em todo o lado, é uma realidade vasta e complexa, gerando fortes polémicas mesmo nos países mais desenvolvidos. A solução americana, como o livro mostra, é consensualmente um desastre, talvez pior do que o nosso. Mas Portugal tem aqui um grave problema estrutural, que a actual política corporativa está a agravar. Talvez um meteorito desperte as consciências para o debate indispensável acerca deste decisivo problema nacional.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico