Presidente Mandetta
Com uma semana de Governo Bolsonaro, foi escrito neste espaço que ao presidente da República não cabia mais do que o papel de cheerleader na estrutura.
Jogadores, treinadores, dirigentes são outros - ele é apenas um agitador de pompons para animar os tempos livres da claque bovina que ainda o leva a sério.
Grita contra a ameaça do comunismo, que nunca foi poder no Brasil, esperneia contra os bandidos, embora defenda milicianos, reclama de fraude na eleição de 2018, aquela que ganhou, desdenha do Coronavírus, apenas uma histeria, ataca Leo DiCaprio, Greta Thunberg, a primeira-dama francesa, o Carnaval, os índios, as mulheres, etc.
Um ano e dois meses depois, a sua vocação ficou escancarada no medonho episódio em que, mesmo tendo estado na companhia de 15 contaminados (ou seja, cerca de 5% do total de infetados conhecidos em todo o Brasil), tocou e abraçou 272 apoiantes, parte deles idosos, apesar de todas as indicações em contrário, até da minoritária ala sã do seu governo.
Fechado no Planalto, sentiu uma irrefreável pulsão interior de sair e agitar pompons perante a claque, afinal, a sua única função. Foi quase um grito de profissionalismo: já que eu não faço mais nada, não entendo de economia, de saúde, de educação, de relações internacionais, devo agitar o meu pompom aos meus apoiantes nem que para isso os mate.
Com perto de um ano de Governo Bolsonaro, entretanto, escreveu-se aqui que o presidente não é um eucalipto, no sentido em que, pese as suas bizarrias e extravagâncias, ele não consegue secar o solo em redor e impedir os seus próximos de brilhar.
Pelo contrário: na comparação com ele, toda a gente floresce. Rodrigo Maia, até há pouco um jovem parlamentar apagado e monótono alçado à presidência da Câmara dos Deputados, ao lado de Bolsonaro parece assertivo, sensato, adulto, responsável, prático, quase um primeiro-ministro, de facto.
O impopular Michel Temer, apesar de ser resultado do que de mais podre Brasília produziu em décadas, colocado lado a lado com o sucessor é um exemplo de sentido de estado, de cultura geral, de respeito pela democracia e pela ordem institucional.
Lula da Silva, mesmo atravessando a fase mais negra da sua vida pública, sob o bolsonarismo saiu reforçado aos olhos internacionais, homenageado em Paris e Roma, celebrado por intelectuais europeus e americanos, abençoado pelo Papa.
E agora é a vez de Luiz Henrique Mandetta, o ministro da saúde, por comparação com o amalucado chefe de estado, se tornar, aos olhos do povo não bovino, um oásis de firmeza e de clareza no combate à pandemia, com discurso alinhado aos políticos do mundo todo que acham que a terra é redonda.
Mandetta, esclareça-se, não é nenhum político fora de série.
(Secretário da Saúde de Campo Grande, a capital de Mato Grosso do Sul, entre 2005 e 2010, responde a um inquérito por fraude em licitação, tráfico de influência e saco azul na criação de um sistema de prontuários eletrónicos. Auditoria feita em 2014 pela Controladoria-Geral da União, o órgão que fiscaliza a gestão pública, mostrou que, apesar de o pagamento pelo contrato estar praticamente finalizado, o sistema não havia sido instalado nas unidades de saúde.)
Mas perto de Bolsonaro parece. Qualquer um parece.
Enquanto o cheerleader fazia acrobacias para a torcida organizada, foi Mandetta que se juntou aos líderes dos outros poderes, o já referido Maia, o presidente do Senado Davi Alcolumbre e o presidente do Supremo Dias Toffoli, todos eles atacados publicamente por Bolsonaro, em reunião para combater os efeitos do Coronavírus. E a João Doria, governador de São Paulo, o mais populoso e influente dos estados, e inimigo de Bolsonaro.
Sucede que na estrutura atípica e perigosa deste governo, o cheerleader tem poder, se lhe apetecer. E uma insegurança danada. Resultado: esvaziou o protagonismo de Mandetta e colocou um general - mais um - como coordenador do combate à pandemia.
Como não é eucalipto, opta por desmatar quem lhe faça sombra.
Na terça-feira um cidadão haitiano viralizou ao confrontar Bolsonaro em frente ao Alvorada. "Você já não é o presidente", disse. Errou: nunca foi.
Correspondente em São Paulo