A lira de Nero e o Lira de BolsoNero

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Em julho passado, reagindo a críticas do bastonário da Ordem dos Advogados, Jair Bolsonaro disse saber como morreu o pai dele, um desaparecido da ditadura militar.

Insinuou que teria sido morto por membros de organizações de esquerda e não pelo regime, contrariando todos os dados históricos e científicos sobre o caso.

Na sequência, Miguel Reale Junior, o advogado que redigiu o texto do impeachment de Dilma Rousseff, disse ao DN que Bolsonaro era caso de interdição e adiantou que, na semana seguinte, iria publicar artigo no jornal O Estado de S. Paulo a apelidá-lo de "BolsoNero".

A alcunha só pegou internacionalmente oito meses depois, quando em editorial a The Economist se lembrou de idêntico jogo de palavras, agora já não a propósito do ataque cobarde ao pai do bastonário torturado no regime militar mas a respeito da condução suicida - ou genocida - da crise do novo coronavírus.

A publicação britânica, bíblia dos neoliberais, registava no final de março os confrontos entre os governadores e prefeitos brasileiros, na sua esmagadora maioria favoráveis ao isolamento para achatar a curva de infetados, evitar o colapso dos sistemas hospitalares e assim retomar a atividade económica de forma mais rápida, segura e eficaz, e o presidente da República, um crítico do confinamento.

Sublinhava ainda o braço de ferro entre ele, BolsoNero, e Luiz Henrique Mandetta, o sensato ministro da saúde que se tornou persona non grata no círculo de amizade presidencial por ter subido vertiginosamente de popularidade ao decidir agir em conformidade com a Organização Mundial de Saúde e com quase todo o mundo civilizado.

BolsoNero, por sua vez, continuava a The Economist, preferiu juntar-se a uma espécie de grupo das trevas, ao lado da Nicarágua, Bielorrússia e Turquemenistão, países com regimes autoritários ou ditatoriais que também negam o óbvio.

As comparações de Bolsonaro com Nero resultam, claro, das semelhanças na forma como o maluco imperador romano do século I e o absurdo presidente brasileiro do século XXI gerem as crises que marcam os seus consulados - a pandemia no caso de Bolsonaro, o grande incêndio de Roma no caso de Nero.

Um e outro são considerados omissos, para dizer o mínimo, ou incendiários, para dizer o máximo.

No caso de Bolsonaro, cujas ordens dadas aos brasileiros em sentido contrário às que eles recebem dos seus governantes estaduais e municipais aumentaram de forma dramática a dimensão da doença no país, ficará para a história a imagem dele a andar alegremente de jet sky num lago brasiliense no dia em que o país ultrapassava a barreira das 10 mil mortes.

À hora a que este texto é escrito, agora com mais de 12 mil corpos amontoados em decorrência da falta de unidade, de preparo, de organização e de cuidado no combate à doença, a preocupação principal do presidente da República é salvar a própria pele.

Empenha energia numa briga fratricida com Sérgio Moro, na qual o ex-ministro o acusa - agora com provas em vídeo de um conselho de ministros - de interferência na polícia para proteger o seu clã - no item família, verdade seja dita, Bolsonaro difere de Nero, que não hesitou em matar a própria mãe Agripina.

Como essa briga fratricida pode, no limite, desaguar em impeachment, Bolsonaro investe também o seu tempo em reuniões com o "centrão", o grupo de partidos que desde há décadas vive de trocar apoio ao governo de plantão, seja de esquerda ou de extrema-direita, em troca de nacos do poder e do orçamento públicos.

Como no fim das contas serão os partidos a julgar o seu eventual impeachment em votação na Câmara dos Deputados, Bolsonaro ensaia uma espécie de Mensalão a céu aberto - toma lá uma empresa estatal para gerires a teu gosto, dá cá um voto a meu favor quando eu precisar.

Nero, rezam as crónicas, tocava lira enquanto o povo agonizava durante o Grande Incêndio de Roma de 64.

Ao mesmo tempo em que no Brasil real hospitais e cemitérios entopem, Bolsonaro negoceia a sua continuação no poder sob o ar condicionado do Palácio do Planalto, com o chefe - um acusado de corrupção e de violência doméstica - desse grupo de parlamentares assumidamente oportunistas.

Chefe esse que, por coincidência, até se chama Lira, Arthur Lira.

Correspondente em São Paulo

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