Marrocos, Israel e judeus berberes
O filme-documentário "Tinghir-Jerusalem, les echos du mellah", do marroquino Kamal Hachkar, 2012, marca para os marroquinos, sobretudo para a reivindicativa Comunidade Amazigh local, mas também magrebina e, já lá irei, um momento de descoberta e de resgate da memória dos judeus-berberes autóctones do centro de Marrocos.
Hachkar, muçulmano e natural de Tinghir, perto de Errachidia, na fronteira com a Argélia, parte, a partir de França onde vive desde os 6 meses, à procura das suas origens mais remotas, materializando na tela também as suas memórias da grande viagem que todos os verões realizava com os seus pais ao "bléd", à terra como nós dizemos. O seu avô é o seu guia pela judiaria decrépita e abandonada de Tinghir, pelo êxodo desta comunidade no final dos anos 50. É aqui, aliás, que começam as relações oficiosas entre o reino de Marrocos e o Estado de Israel, já que este filme-documentário deixa no ar um negócio entre o jovem rei Hassan II e o movimento sionista que paga para esta comunidade ser transferida para o recém-criado Israel, a precisar de gente para povoar o território. Mais, provar a existência de comunidades judaicas autóctones, coloca também em causa a narrativa clássica sobre a diáspora deste Povo. Sempre ali estiveram, não sendo fruto de nenhuma expulsão a partir da Palestina.
"Tinghir-Jerusalem" foi uma verdadeira pedrada no charco a todos os níveis, ganhando inúmeros prémios em todos os festivais de cinema onde foi exibido e, num Magrebe em plena Primavera Árabe, teve também a virtude de inflamar ainda mais e, para além das populações, antropólogos, historiadores e linguistas na reivindicação do Tamazight como Língua Oficial em Marrocos, Tunísia e Líbia. Na Argélia já o tinha sido na década de 80. Tudo porque Achkar reserva a 2ª parte do filme para uma visita a Israel, onde se encontra com os descendentes desta comunidade expatriada e os aborda directamente e de surpresa na língua-mãe que ainda hoje se fala em Tinghir e arredores e é, de facto comovente ver as reacções e perceber as janelas que se vão abrindo na mente aquando das respostas dadas no mesmo código.
A recente normalização de relações diplomáticas entre Marrocos e Israel, apenas vem tornar o oficioso em oficial, já que desde o "êxodo de Tinghir", os contactos se foram desenvolvendo e aprofundando, sobretudo em contexto de Guerra-Fria e de Guerra ao Terrorismo. Era aliás expectável que a Administração Trump jogasse este trunfo agora e que Marrocos aceitasse, no meio de uma crise económica sem
precedentes e também de novo em estado de guerra com os independentistas sahraouis. Por muitos drones que o contribuinte marroquino tenha que pagar aos americanos, a moeda de troca não tem preço. O reconhecimento da soberania marroquina sobre o Sahara Ocidental, tornando-o assim oficialmente em Sahara Marroquino. Dentro de 1 mês, quando a Administração Biden tomar posse, terá que se preocupar desde logo em equilibrar este tabuleiro e privilegiar os argelinos, o que deverá vir incluído no pacote Líbia, fazendo da Argélia uma base de projecção de força complementar à já existente na Tunísia, mas sobretudo utilizada pela Turquia.
A Argélia, por seu turno, terá também que reavaliar o seu posicionamento face à questão sahraoui, que já era clara quanto à inviabilidade da via armada. Esta contenda aproxima-se do fim e abre portas a dois caminhos possíveis. Os argelinos, de novo com um Presidente doente, terão obrigatoriamente que proceder à adiada mudança geracional e, os marroquinos, deverão começar a preparar-se para uma possível abdicação de Mohammed VI em prol do jovem Príncipe Hassan, futuro Hassan III. Serão estes, os actores principais do novo Magrebe sem presidentes, nem reis eternos!
*Politólogo/Arabista
O Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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