Identidade política e autocensura
Têm surgido vozes, desde há alguns meses e cada vez com maior nitidez sobretudo no mundo académico, interrogando-se até que ponto é aceitável no âmbito da investigação científica e do debate racionalista essa espécie de autocensura, resultado de posições marcadamente reacionárias, que impedem o debate sobre determinados temas que possam melindrar, mais ou menos indirectamente, qualquer sector da sociedade. Assim sendo, em Julho passado, publicou-se nas páginas da Harper"s Magazine uma carta aberta que alcançou grande repercussão, não tanto porque o seu conteúdo fosse realmente novo, mas pela envergadura e notoriedade dos intelectuais que a assinavam. Personalidades tão distintas como Noam Chomsky, Salman Rushdie ou Francis Fukuyama, juntaram as suas vezes num texto intitulado "A Letter on Justice and Open Debate". Entre outros aspectos, denunciavam o clima intolerante que está a subir de tom no seio das sociedades ocidentais, onde em vez de se fomentar o debate aberto de ideias, se vai impondo um ambiente de intolerância que impede o auténtico desenvolvimento democrático da sociedade moderna, de tal maneira que tudo o que se afaste de uma pretendida norma moral imposta por setores cada vez mais reacionários, sem que este adjetivo implique se são de direita ou de esquerda mas, sim, contrários a quem quer que tolere os que pensam de forma diferente, a ponto de os votarem ao repudio, ao ostracismo e vergonha pública. Isto até se chegar ao nível máximo de refinamento dessa estratégia perversa, que consiste em impor uma cada vez mais férrea e definitiva autocensura.
Dois meses depois, Laurent Dubreuil publicava nas mesmas páginas de Harper"s um ensaio intitulado Nonconforming, em que analisava ainda mais em profundidade a atual situação, definindo-a como a erosão da liberdade académica pela aplicação desse conceito tão anglo-saxónico - e tão sinistro - definido como identidade política. Esta definir-se-ia não como a simpatia ou o apoio a certa causa, mas como a aceitação exclusiva e excludente de uma determinada circunstância pessoal, de maneira tal que delimitaria total e radicalmente a generalidade de actividades realizadas por uma pessoa concreta, reduzindo , ao mesmo tempo, as que poderiam desenvolver outras pessoas que se encontram no mesmo ambiente . Para melhor ilustrar estas situações, um dos exemplos apontados por Dubreuil é o mal estar profundo que provoca em alguns estudantes de Literatura Comparada que o seu professor lhes recomende, para entender o movimento de emancipação dos escravos em São Domingos (Antilhas), a leitura de uma série de novelas, como a extraordinária de Alejo Carpentier, O Século das Luzes. O mal estar aparece, não em estudantes afro-americanos, mas nos descendentes de imigrantes europeus, que temem ofender os seus colegas ao debater na sua presença um assunto tão delicado. Da mesma maneira, a identidade política assim entendida constitui um travão absoluto a qualquer debate académico. Com algum humor, muito de agradecer nestas turbulentas épocas que vivemos, recorda também o caso de um professor algo medíocre que começava as suas intervenções referindo, em primeiro lugar a sua condição de vegan. Como tal, qualquer comentário à escassa transcendência das suas observações posteriores constituiria um ataque ao conjunto de vegans.
Do mesmo modo, a partir desse ponto de vista redutor, as obras dos autores clássicos devem submeter-se sem demora a um exame implacável que revele os seus numerosos ataques a qualquer uma das muitas minorias que compõem a sociedade actual e, em consequência, ser eliminadas dos planos de estudo. A coisa não acaba aí: haverá que expulsar dos claustros universitários e das páginas de prestigiadas publicações todo aquele que não se arrependa a tempo e continue a citar essas obras nocivas. Mais, a identidade política deve levar-se até às últimas consequências. Não basta pertencer a esta ou a outra minoría, há que moldar-se ao cânone visível - e único - que demonstra publicamente essa mesma pertença já que, de contrário, estaríamos contribuindo para os ataques contra a generalidade do colectivo. Em definitivo, do que se trata é de impor quotas cada vez maiores de autocensura até que ninguém possa, nem tão pouco saiba, discordar no menor aspecto. Há que implantar esse mundo feliz que Aldous Huxley já vislumbrara nos anos trinta do século XX, citando precisamente o título da sua novela, Admirável Mundo Novo, um dos versos de outro desses autores que, segundo a identidade política, ao ferir tantas e tantas sensibilidades, haverá que eliminar dos planos de estudo: o malvado William Shakespeare.