Podíamos ter ignorado os coletes amarelos à portuguesa?

Lições de bom senso vindas da rua não nos põem a salvo de um mundo perigoso.
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Nestas últimas horas, depois de nos termos apercebido da frustração do protesto dos coletes amarelos, colocaram-se dúvidas, dentro e fora das redações, nas redes sociais, nomeadamente. Porque é que os media portugueses deram tanta atenção a este protesto dos coletes amarelos à portuguesa que se revelou pífio - pelo menos a esta hora? Podíamos, devíamos não lhes ter ligado?

As respostas a estas perguntas não são fáceis. Por muitas razões, que hoje vão parecer desculpa - e não desculpam nada na verdade, mas servem de explicação. Uma, é simples e assustadora: o mundo está tão perigoso e imprevisível que já estamos disponíveis para acreditar em muita coisa que dantes não considerávamos possível.

Porque já não confiamos nos nossos instintos, sequer. E isso tem a ver com já nos termos enganado muito, em grande e em pequeno. Com termos convicções que se verificaram goradas. Enganámo-nos tanto que ficámos disponíveis para achar normais coisas que nem sequer verosímeis eram.

Desta vez, demos cobertura à marcação de uma manifestação contra incertos, convocada por anónimos, disseminada por todos os cantos de Portugal, numa altura em que não há razões para protestos fortes contra algo específico - como houve em setembro de 2012, ou no caso das portagens da ponte, em 1994.

Se tivéssemos escalpelizado esta frase à luz do bom senso, talvez tivéssemos percebido que o que se anunciava era muito improvável. As agremiações que têm de mobilizar pessoas - partidos, sindicatos - sabem bem o esforço que têm de fazer para pôr uns quantos milhares na rua. E levam anos disto. Não o fizemos. E isso tem também a ver com a segunda parte desta questão.

Podíamos ter ignorado, nos jornais, um protesto de que toda a gente falava, que se desenhava através das redes sociais, onde o comportamento ainda é muito desconhecido, até por quem estuda comportamentos grupais?

A resposta honesta é: não. Talvez haja outras, tão populistas como as razões invocadas para este protesto, ou mais engajadas politicamente. Aliás, entidades com outros poderes de investigação e informações, como a polícia e os serviços secretos, levaram tão a sério como os jornais a marcação deste protesto.

O que devíamos ter feito, fizemos, como jornalistas que somos. O DN e vários outros meios de comunicação social portugueses. Pesquisamos, investigamos, tentamos encontrar o que estava e quem estava por detrás disto.

E encontramos: descobrimos as páginas dos autores, traçámos-lhes os perfis, descobrimos ligações à extrema direita e a outros movimentos extremistas, explicámos as redes sociais que usavam e como recusavam o contacto com os jornalistas. No DN, ontem até demos a notícia de cisões no movimento original, o que teve base no Bombarral.

Mas lá está, o mundo está perigoso e estranho. E uma coisa estes movimentos populistas - sem serem populares, até - já nos tiraram: o recuo e o bom senso. Resta-nos o cinismo e o civismo. E a lição de bom senso que nos deram os portugueses, hoje.

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