Globalismo sem estratégia

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Talvez a criação do conceito e realidade de "fronteiras", aplicável ao género humano, seja uma referência da "época" inicial da estabilidade dos povos. Que essa estabilidade tenha exigido condições de subsistência, fidelidade entre os membros do grupo, criação de amor à terra, valores culturais articulando o passado com o presente e uma utopia de futuro, foram elementos que antecederam e retardaram à chegada à conceção do "mundo único", isto é, sem guerra, porque "o planeta é a morada de todos os povos e seres vivos". Designadamente, quanto à Europa, desapareceu a ideia de que "outrora existiram populações puras", sendo geralmente sabido que agora os cientistas estão a dar novas respostas à seguinte pergunta: quem são verdadeiramente os europeus e de onde vieram?

As suas indagações mostram que o continente europeu tem sido um caldeirão de culturas desde a época glaciar. Os europeus atuais são uma mistura variável de linhagens ancestrais oriundas de África, do Médio Oriente e da estepe russa. Tal não impediu até hoje que o conceito e a realidade da fronteira tivessem o efeito de rutura, frequentemente conflituosa entre partes da humanidade que é só uma (Susan Goldberg, "A humanidade em movimento", inNational Geographic, agosto de 2019).

Isto aplica-se à totalidade do globo, cuja história conduziu à identificação de continentes, de comunidades variadas pela invocada etnia e pelas crenças, vida habitual, e também de antagonismos invocados para defesa ou alargamento das fronteiras, por projetos de expansão, por variedade de governanças impondo uma relação entre poder e obediência.

A tumultuosa história da Europa, se chegou à identificação do "europeísmo" (Camões, Portugal cabeça da Europa toda), não apenas tem um passado de conflitos armados interiores como, responsabilidade primeira de Portugal e Espanha, desencadeou o movimento da ocidentalização do mundo, na longa epopeia das descobertas e das conquistas.

Nessa tarefa teve parte fundamental o cristianismo, destacando a esperança de que a invocação do Pai nosso, e não do meu Pai, com que se inicia a única oração que Jesus nos deixou, levasse à utopia da "Terra casa comum dos homens" que tardiamente orientou a revisão do método da relação dos europeus com o mundo que procuravam ocidentalizar.

Mas nesse mundo há exemplo de igual perspetiva, do ponto de vista do planeta, designadamente na pregação do Dalai Lama, que há anos tive a honra de apresentar na Reitoria da Universidade de Lisboa. Na sua residência de asilo, em Dharamsala, na Índia, continua a pregar a mesma esperança, de que entre nós deixou notícia, apesar de não poder esquecer a invasão das tropas de Mao Tsé-tung que, em 1950, e finda a Segunda Guerra Mundial, invadiram, ocuparam e destruíram a sua terra.

A sua fé é esta: "Acho que as pessoas que ocuparam o poder, por vezes, ainda pensam como no século XX e, sempre que encontram dificuldades, pensam como poderão resolvê-las pela força." Mas lembra que "hoje existe um mundo mais esperançoso, em termos gerais, e que todos fazemos parte de um todo de sete mil milhões de seres humanos"; dedicando as suas orações não apenas no sentido de melhoria desses seres humanos, mas para que seja assumido que o mundo estar em mudança não diz apenas respeito ao próprio planeta como casa dos seres vivos, diz antes respeito às interdependências de todos os povos que se diferenciarem dentro de fronteiras de liberdade ou de submissão, e à desatualização das construções normativas, em que se destacam a ONU, e os tribunais internacionais.

De facto, um mundo de ruturas, sem que o globalismo, que surpreende pela complexidade, deixe de agravar os conflitos com estratégias, anúncios normativos, lógicas económicas, tudo de regra ultrapassado pelos factos, que são mais rápidos. Se os profetas de cada fé exigem frequente reinterpretação da mensagem que o futuro não pareceu confirmar, o já crescente número de eucratas, que assumem o arbítrio de abandonar tratados a favor da sua incontrolável imaginação, não augura recuo no culto da leviandade que agrava o risco de provocar calamidades, agora globais.

Não parece resposta suficiente a reprovação verbal inspirada pela justiça natural. O Conselho de Segurança não precisa de aturada meditação sobre as suas competências para chamar à razão os crentes da leviandade, que designadamente usou para abortar a tentativa de dois titulares do direito de veto - Reino Unido e França - ao pretenderem impedir a política de Nasser para o Suez.

O conceito do crescente unilateralismo dos EUA, a debilidade perante a redefinição da fronteira de interesses próprios da Rússia, a invocação do interesse dos EUA sem cuidar de evitar desastres ecológicos que disputam a dimensão dos causados pelo furacão Dorian, tudo são alarmantes sinais de que a leviandade é a dominante estratégia de resposta ao globalismo.

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