O tempo e as mudanças
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria.
Camões
Sou filho de juiz, neto de advogado e sobrinho de catedrático de Direito. Apesar de tudo isto, nunca fui um jurista de vocação e não me sinto habilitado a juntar a minha voz, nem a minha prosa aos meus companheiros, eminentes juristas, signatários do Manifesto dos 50 (que acho que já vai pelos 200), que eu assinei também, com muita honra.
Apenas junto aqui algumas recordações familiares, a contribuição que pode dar um literato com fumos de memorialista.
Havia no tempo do meu pai (que foi, antes de ser juiz, delegado do Ministério Público) dois institutos jurídicos que se repercutiam nas conversas em nossa casa, e que, ao que parece, caíram hoje em desuso.
Um era o “réu preso”. Se havia num processo um réu preso, meu pai saía de casa a qualquer hora e interrompia tudo o que estivesse a fazer para ir tratar daquela prisão. Hoje, certamente não deixaria de ir passar férias connosco, deixando o réu à espera, preso na sua cadeia...
Outro era o “segredo de Justiça”. Havia assuntos que meu pai apenas conversava, sussurrando, com minha mãe (também licenciada em Direito), e que fazia por que eu não ouvisse. Eram os segredos da Justiça! Se fosse hoje, essas conversas em voz baixa estariam já transcritas em vários jornais, lidas em várias rádios e televisões e discutidas bravamente no espaço público, antes mesmo de meu pai poder trazê-las a julgamento.
Como a todas as coisas, aplica-se à Justiça o verso de Shakespeare: “O pensamento é o escravo da vida e a vida é o bufão do tempo.” Ou, voltando à citação em epígrafe do nosso Camões, o tempo cobriu, com seu manto ilusório de transparência, esses preceitos e procedimentos antigos, de que eu ainda me lembro. Deve ser hoje mais difícil seguir a carreira do Direito.
Mudando de assunto, penso muitas vezes que nós, os velhos, somos uma espécie de embaixadores do tempo passado junto do tempo presente. Apresentamos as nossas credenciais ao meter os papéis para a reforma, observamos e analisamos todas as mudanças em que já não participamos e surpreende-nos o novo, como me surpreenderam, nos meus tempos de embaixador no ativo, costumes, artes e tradições de outros povos.
O novo encerra a promessa e nós temos medo da desilusão. O novo encarna a força da vontade e nós temos a pele crestada das batalhas perdidas ou meio ganhas da nossa vida. Mas não nos iludamos: por muito que o estranhemos ou receemos, é o novo que tem a vida do seu lado. Por isso, como bons embaixadores do passado, compete-nos manter o diálogo e o intercâmbio de ideias e de experiências com os novos, junto de quem somos embaixadores acreditados pelo tempo.
O tempo tudo muda e o próprio mudar não é já como soía, como bem via Camões. As mudanças são aceleradas, as sociedades mudam com rapidez o seu modo de funcionamento, e o nosso problema, como dizia Keynes, é que sempre somos governados por pessoas formadas uma ou duas gerações anteriores às mudanças. Mas há algumas coisas que não mudam e são, por um lado os princípios e os valores, por outro os interesses e a ganância.
A guerra paira sobre nós, tal como no século passado e, afinal, tal como em todos os séculos passados. Há coisas que não mudam e Freud tinha razão quando, em 1915, dizia que a nossa pulsão de morte nos arrastava sem remissão para a guerra. E nós, embaixadores do século XX no século XXI, vemos com apreensão, e até com terror, tudo aquilo que afinal não mudou.