O que é e faz o SNS
Será que os portugueses sabem mesmo o que representa e faz o nosso SNS? Será que têm a consciência clara da sua enorme e fundamental importância? Será que percebem que, perante uma doença rara ou muito grave e complexa, só ele tem capacidade de resposta eficaz e competente? Têm consciência de que a alternativa privada não tem, para muitas delas, uma resposta à altura? Resumindo, os portugueses, mesmo aqueles que infelizmente não têm ainda médico de família, esperam nas Urgências demasiado tempo ou para certas especialidades e doenças têm listas de espera enormes, têm consciência de que, para a esmagadora maioria das doenças que põem em risco a sua vida, é no SNS que têm resposta? Que, para certas doenças, só equipas médicas multidisciplinares que funcionam com uma hierarquia baseada na experiência e na competência podem ter capacidade de resposta? Que perante um acidente grave com traumatismos complexos só as urgências do SNS têm capacidade de resposta?
O SNS é muito mais do que Urgências superlotadas e falta de médicos de família. E que essa falta de médicos tem causas de décadas de falta de planeamento, com responsabilidades várias, incluindo a Ordem dos Médicos? Custa-me ver publicitar e criticar diariamente deficiências e constrangimentos evidentes, que evidentemente têm de ser ultrapassados, sem que, por outro lado, se diga o que de fenomenal se faz no SNS.
Pensar e defender que o privado pode ser uma alternativa ao SNS é redutor e falacioso. Pode e deve colaborar na diminuição de certas listas de espera em doenças que não exigem sofisticadas competências e recursos, para tratamentos onde uma resposta individual pode ser suficiente, mas nunca pode competir com os verdadeiros Centros de Referência para diagnóstico e tratamento de doenças raras e ou complexas da oferta pública.
Podem os portugueses, e ainda bem, ter seguros de saúde que lhes permitam recorrer ao privado, para fazer face às muitas das doenças em listas de espera, mas esses seguros, além de não cobrirem despesas exageradas, que obrigam a devolver os doentes ao SNS, não dão acesso automático às competências exigidas para tratamento de certas doenças.
O SNS, organizado em Centros de Referência, tem essa possibilidade, oferecida a todos com eficácia e não é por acaso que dos mais de uma centena desses Centros actualmente existentes em Portugal, apenas dois estão sediados na oferta privada, e numa área onde há também excesso de oferta pública. Para diagnosticar e tratar certas doenças são exigidos números mínimos de doentes que garantam competência e permitam a formação dos mais novos, e isso só acontece no SNS.
Vivi o problema do excesso de doentes nas Urgências durante décadas no Banco do Hospital de São José, com angústias enormes, onde os doentes se acumulavam em macas nas salas de observação, que não eram mais que corredores, onde, para se chegar a observar os doentes era preciso deslocá-las. Algumas das nossas Urgências hospitalares, em alturas específicas, continuam com problemas não tão graves, mas parecidos. Participei muito novo nas maiores greves médicas de sempre, quando a nossa dignidade foi posta em causa. E, nessa altura, não havia competição pelos recursos médicos de grupos privados, como hoje, de uma forma por vezes escandalosa, acontece.
As dificuldades do SNS não devem ser constantemente exibidas como forma de o desvalorizar e descredibilizar. Devem ser encaradas de frente para tentar e conseguir ultrapassá-las. Nunca com a finalidade última de o difamar e tentar destruir. Se se destruir o nosso SNS, com seguros ou sem seguros o resultado é o mesmo. Morrerão muitos doentes sem necessidade.
O SNS é muito mais do que Urgências superlotadas e doentes sem médico de família! Mais uma vez faço um apelo. Não façam do SNS uma arma de arremesso na luta política. Discutamo-lo com o objectivo de o salvaguardar e aperfeiçoar. Claro que em Portugal, e na minha modesta opinião, há lugar para a oferta privada em Saúde. Só não haverá lugar para aqueles que encaram este negócio como o mais rentável a seguir ao negócio das armas.
Uma nota final. Há meia dúzia de anos, em Genebra, o jantar final de uma reunião científica em que participei teve lugar no restaurante do maior hospital da cidade. Acabou tarde e, para sair, era necessário fazê-lo através do Serviço de Urgência. Para esse jantar era exigido ir de smoking e as senhoras de vestido de noite. Uma tradição de muitos anos, que apesar do local se quis manter. A minha mulher e eu não queríamos acreditar. Vestidos a rigor e, porque não dizê-lo com uma certa vergonha, tivemos de atravessar longos corredores onde era difícil circular entre as macas de doentes acumuladas. Lembrei-me do São José dos meus tempos, e estava na Suíça.
Não se veja neste escrito a desvalorização do problema das Urgências e da falta de médicos. Tal como não desvalorizo outras dificuldades. Mas resolvi lembrar o que de fantástico se faz diariamente no SNS, e que nunca é notícia de abertura de telejornais.
Cirurgião