O pudor e o erotismo segundo John Cassavetes
O cartaz promocional era a cores, mas o filme está fotografado num admirável preto e branco, com assinatura de Lionel Lindon (1905-1971), mestre das imagens na idade clássica de Hollywood: Too Late Blues, primeira realização de John Cassavetes (1929-1989) para um grande estúdio de Hollywood (Paramount), surgiu há 60 anos nos ecrãs dos EUA - a estreia portuguesa ocorreu alguns meses mais tarde, em novembro de 1962, com o título Prisioneiros da Noite.
A efeméride está longe de ser um exercício meramente nostálgico. De facto, este é um dos títulos de Cassavetes que tende a ser esquecido, ou até menorizado, como se a sua estreia como cineasta - ocorrida em 1958, com o lendário Shadows/Sombras - o encerrasse definitivamente na categoria dos autores independentes que, a par das novas vagas europeias, transfiguraram a paisagem do cinema americano. Aliás, acontece mesmo reduzir o arranque da sua carreira de cineasta a Shadows e Faces/Rostos, lançado em 1968, outra referência lendária no interior da produção independente.
Importa lembrar o óbvio, ontem como hoje sistematicamente recalcado pelas visões banalmente "panfletárias" da produção cinematográfica dos EUA. A saber: a chamada área independente, mesmo integrando personalidades cuja criatividade nunca saiu desse domínio (Jim Jarmusch, por exemplo), está longe de existir como uma espécie de território de exílio sem qualquer comunicação com o "exterior".
No período balizado por Shadows e Faces, Cassavetes prosseguiu a sua carreira de ator, surgindo, aliás, em dois grandes sucessos com chancela, precisamente, de grandes estúdios: Doze Indomáveis Patifes (1967), de Robert Aldrich, transfigurando em tom de aventura um episódio verídico da Segunda Guerra Mundial (valeu-lhe a sua primeira nomeação para um Óscar, na categoria de ator secundário), e A Semente do Diabo (1968), de Roman Polanski, prodigiosa variação sobre matrizes do drama familiar contaminado pelo género de terror. Mais do que isso: foi nesse período que ele assinou Too Late Blues e, para a United Artists, Uma Criança à Espera (1963), retrato de uma instituição para crianças com distúrbios emocionais que foi uma das derradeiras interpretações de Judy Garland.
Too Late Blues é mesmo um objeto indissociável do "star system", ainda que na sua vertente musical: nele encontramos Bobby Darin (1936-1973), na época uma figura de enorme popularidade, pelo menos desde Beyond the Sea, versão em língua inglesa da canção La Mer, de Charles Trenet (em 2004, Kevin Spacey interpretou e realizou uma bela evocação de Darin, intitulada, precisamente, Beyond the Sea - passou entre nós como Bobby Darin - O Amor É Eterno). Darin interpreta um músico de jazz que resiste a corromper a sua atividade em nome de estratégias exclusivamente comerciais, envolvendo-se com uma cantora interpretada por Stella Stevens, jovem atriz em ascensão que viria a contracenar com Jerry Lewis na sua genial variação sobre O Médico e o Monstro, entre nós lançada como As Noites Loucas do Dr. Jerryll (1963).
Vendo ou revendo agora Too Late Blues, reconhecemos o simplismo descritivo, muitas vezes moralista, segundo o qual os grandes papéis femininos do cinema americano são um fenómeno recente e, mais do que isso, uma espécie de "libertação" tardia. Ou ainda que a integração de personagens afro-americanas nas dinâmicas narrativas dos filmes só começou a acontecer neste nosso século XXI...
Mas a importância histórica do trabalho de Cassavetes decorre, acima de tudo, da dimensão humana do seu olhar. Entenda-se: do trabalho com os atores. Todo o seu universo cinematográfico surge marcado pelo seu saber como intérprete, sendo inevitável recordarmos os filmes em que dirigiu a mulher, Gena Rowlands, por vezes com ela partilhando o protagonismo - citemos apenas o sublime Opening Night/Noite de Estreia (1977), passado nos bastidores de um teatro.
Para Cassavetes, não se trata apenas de contar com excelentes atores e deles obter as melhores performances. Toda a sua visão do mundo - incluindo a discussão do lugar do cinema no interior desse mundo - envolve uma proximidade dos corpos, misto de contundência e ternura, capaz de nos aproximar de uma verdade que as palavras nunca esgotam, mesmo se a podem tentar descrever. Como se, enfim, a câmara de filmar fosse o instrumento de uma relação tecida de pudor e erotismo.
Jornalista