O perigoso erro de "relativizar"
Capoulas Santos foi por três vezes ministro da Agricultura. Primeiro nos governos de António Guterres e depois no primeiro governo de António Costa. Como deputado ao Parlamento Europeu (2004-2014), ele juntou a perspetiva parlamentar das bancadas de Bruxelas e Estrasburgo à longa vivência como membro do Conselho de Ministros de Agricultura e Pescas. Trata-se, pois, de alguém com acesso a informação qualificada e privilegiada ao longo de quase três décadas. Por isso mesmo só posso classificar como inaceitáveis as afirmações por ele prestadas, numa entrevista concedida à Antena 1 e ao Negócios. Interrogado sobre a seca, o ex-ministro disse o seguinte: "Temos de relativizar o problema. Há registos históricos de secas prolongadas, particularmente, no sul do país, desde o século XV, XVI. Não é um fenómeno novo. E os dados estatísticos revelam que em cada ciclo de 10, 13 anos, há normalmente um período de seca de dois, três ou até mais anos (...) mas não estamos confrontados com um fenómeno novo..."
As palavras de Capoulas Santos são uma negação grosseira do "fenómeno novo" das alterações climáticas, e do seu impacto crescente sobre a agricultura portuguesa. Se estivéssemos a escutar um seguidor de Trump ou Bolsonaro, gente que confunde a realidade com as conveniências da sua fantasia, não haveria admiração. Mas estamos a falar de um socialista de primeira linha que, sem pestanejar, troca a ciência pelos seus palpites. Repare-se que o entrevistado refere registos seculares, qualitativos e imprecisos, ocultando que eles não têm o mesmo grau de validade da rigorosa monitorização quantitativa que só se iniciou no século XX. Como escreveu em 2021 o físico Filipe Duarte Santos, também presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável: "Uma análise da precipitação anual em Portugal Continental no período de 106 anos, entre 1913 e 2019, revela uma alteração do padrão de precipitação nos finais da década de 1960." Comparando o período de 1913 e 1968 com o período de 1968-2019 verifica-se uma diminuição dos valores da precipitação, no segundo período, de 500 mm na região noroeste e de mais de 120 mm na maior parte do sul do país. As afirmações "tranquilizadoras" do deputado socialista, ocorrem na altura em que, justificadamente, a Agência Portuguesa do Ambiente está a promover uma consulta pública (até 30 de junho) sobre "Avaliação das Disponibilidades Hídricas Atuais e Futuras". A apresentação do tema foi feita por Rodrigo Proença Oliveira, um dos nossos maiores especialistas na área. Uma das conclusões é peremptória: "Nos últimos 20 anos a precipitação em Portugal e Espanha diminuiu cerca de 15%, prevendo-se que diminua entre 10 a 25% até ao final do século."
Capoulas Santos prova a justeza de Platão quando separou, definitivamente, a "opinião" (doxa) do "conhecimento" (episteme). As maçãs caíram sobre a cabeça de muita gente, mas só Newton partiu dessa experiência para a lei da gravitação universal... Apesar de estar mergulhado há décadas nos labirintos da agricultura europeia, o ex-ministro parece não ter aproveitado a oportunidade para aprender o essencial. A seca é um dos maiores desafios que o país vai ter de enfrentar se nos quisermos adaptar a um futuro difícil e hostil. Aos políticos não se pede que sejam peritos, mas exige-se a sábia humildade de saber escutar quem sabe. Neste duro tempo novo, a incompetência política pode ser letal para a segurança coletiva. Por isso, não deve nem pode ser relativizada.
Professor universitário