O Partido Republicano já acabou
Em meados de 2016, o recém-nomeado candidato presidencial republicano Donald Trump dava um trambolhão nas sondagens (depois de uma péssima convenção e declarações desastradas) e ficava a quase 20 pontos de Hillary Clinton na corrida à Casa Branca.
Alguns setores da direita americana já apelavam à desistência (soa-vos a alguma coisa do lado democrata em 2024?) para que houvesse tempo de ensaiar uma candidatura alternativa. Num instinto de sobrevivência, que viria a revelar-se recorrente nos momentos em que tudo parecia perdido, afastou Paul Manafort - que até então dirigira a sua campanha - e contratou o chefe de redação do Breitbart, site da alt right que durante anos dera gás às teses de Trump e outros radicais de que “Obama não podia ser presidente porque… nasceu provavelmente no Quénia”, para CEO da sua campana presidencial.
Era a entrada definitiva da extrema-direita no que, inesperadamente, estava a ser a tendência dominante do Partido Republicano para a campanha de 2016. Steve Bannon, figura até então marginal no sistema político americano, tinha a sua grande oportunidade de provar que tudo o que escrevera e incitara nos anos anteriores, em sites, blogues e plataformas de direita alternativa e radical, poderia vir a ter uma expressão relevante e nacional na América. Trump acabara de encontrar o seu ideólogo e, numa primeira fase, escritor de discursos.
A criatura tinha, finalmente, descoberto o seu criador.
Com Bannon na sombra e a construir a “narrativa” (e Kellyanne Conway a fazer o papel histriónico de responder aos ataques a Trump nos programas televisivos, mesmo que para isso tivesse de dizer bizarrias e mentiras descaradas), Donald desenhou o caminho para a Casa Branca mais desconcertante e imprevisível que um Presidente dos EUA alguma vez encontrou.
Acabar com o sistema
Steve Bannon - formado em Georgetown, Virginia Tech e Harvard - mistura uma densidade intelectual indiscutível a uma aversão inaudita ao establishment político de Washington DC. É uma espécie de “génio do Mal”, o Professor Moriarty sem Sherlock Holmes, com uma obsessão em forma de ‘mantra’ assustador: o sistema ‘tem de ser destruído’, porque só a “revolução populista” poderá prevalecer. Prometera, nos anos anteriores, encontrar forma de acabar com as dinastias Bush e Clinton - conseguiu o primeiro objetivo nas primárias republicanas e o segundo na eleição geral de 2016 (a derrota choque de Hillary Clinton). Escolheu o mainstream media da Costa Leste (Washington Post, New York Times) e das grandes networks nacionais como inimigos de estimação e criou o conceito de “factos alternativos” (com o uso de fake news como poderoso instrumento de propaganda) para arrasar, em definitivo, com uma “elite” política e mediática que, desde o segundo mandato de George W. Bush, tem vindo a perder popularidade e prestígio em todos os indicadores e pesquisas na América.
Steve e Donald viram aqui um enorme mercado eleitoral. E estavam certos. Bannon criou e escreveu o guião, Trump interpretou-o: a fase decisiva de 2016 teve como ideia dominante a de que “a América precisa de ser grande outra vez e para isso tem de rejeitar os políticos que dominaram Washington DC nas últimas décadas e fizeram os EUA perder força junto de aliados e inimigos.” Donald era o tipo duro e malcriado que iria fazer o contraponto ao racional e “fraco” (nesta narrativa) Barack Obama, que durante oito anos colocaram a América “numa posição de submissão para o exterior” e permitira o “crescimento do radicalismo islâmico, do terrorismo e do poder de minorias que não representam a verdadeira essência americana.” A “maioria branca” via uma última oportunidade de um “comeback”, depois de oito anos a ver um negro de agenda progressista a dominar a Casa Branca.
O momento da vingança estava a chegar.
Código Bannon
Grupos até então vistos como extremados e marginais no sistema político e mediático viram a sua grande oportunidade. O código Bannon era ter em Trump um candidato que ignorava os ditames do Partido Republicano. A ideia era hostilizar quem era visto pela “real America” como fazendo parte de uma elite que havia que “destruir”.
Democratas e republicanos, quase ninguém escapou: Barack Obama, Hillary Clinton, John McCain, Mitt Romney, Jeb Bush, Mitch McConnell, Paul Ryan, Marco Rubio, Lindsey Graham, tantos outros. Em poucos meses, o nomeado de um dos dois grandes partidos do sistema insultou, caluniou, atiçou e desafiou quase todas as grandes referências da alta política americana. Os manuais do marketing político diziam-nos que o resultado só podia ser desastroso. Mas a noite de 8 de novembro de 2016 foi o tal “11 de Setembro de 2001” para o sistema político nos EUA: nada ficou como antes.
A via radical e destruidora de Steve Bannon ganhara incrivelmente. A receita de “isolacionismo”, “America First”, “nacionalismo económico” e “reforço de fronteiras” venceu como nunca acontecera na eleição presidencial nos EUA. E Trump colocou mesmo “um racista como conselheiro-chefe na Casa Branca” (a expressão é de Bernie Sanders).
Nos primeiros meses de presidência, pelo primeiro semestre de 2017, Trump seguiu a via de Bannon na travel ban; perdeu. Seguiu a via do seu estratega-chefe na revogação do ObamaCare: perdeu. Seguiu Steve (ignorando a própria filha, Ivanka) e anunciou mesmo a saída americana do Acordo de Paris. Steve voltou para o Breitbart, mas nos anos posteriores faria um progressivo regresso à esfera de Trump, elogiando-o constantemente em entrevistas dadas mais tarde. Está de novo a colaborar na campanha presidencial Trump-2024, mesmo estando em pleno cumprimento de uma pena de prisão de quatro meses, por obstrução à justiça. Mesmo esse episódio de pena de prisão mostra o foco de Bannon em querer destruir o sistema: encarou a recusa em responder a investigação parlamentar sobre o ataque ao Capitólio como “um orgulho”, antes de entrar na prisão de Danbury, estado do Connecticut.
O apoio de Dick Cheney a Kamala em contexto
Dick Cheney apela ao voto em Kamala para “salvar a América de Trump”. O antigo vice-presidente republicano considera que Donald Trump é a pessoa mais perigosa para a república desde a fundação dos Estados Unidos. Trump tentou “roubar as últimas eleições através de mentiras e de violência para se manter no poder depois de ter sido rejeitado pelos eleitores. Nunca mais lhe podemos confiar o poder”, apelou Cheney. “Enquanto cidadãos, cada um de nós tem o dever de colocar o país acima da cor partidária para defender a Constituição. Por isso, eu vou votar na vice-presidente Kamala Harris”. Dick Cheney é apontado como um dos mais relevantes vice-presidentes da história americana.
Era o chefe dos “neocons”, corrente que passou a ser dominante na presidência W. Bush depois do 11 de Setembro de 2001, e que levaria a América para as guerras no Afeganistão e depois no Iraque. Cheney é também pai de Liz Cheney, a ex-número 3 da bancada republicana no Congresso, que também apoia Kamala, depois de ter sido frontalmente a favor dos impeachment de Trump, quando ainda estava na Câmara dos Representantes.
O vice-presidente de George W. Bush (2001-2009) a apelar ao voto na candidata presidencial democrata? Seria uma bomba na era pré-Steve Bannon. Mas já estamos numa fase completamente diferente. E é preciso percebermos isso verdadeiramente.
O Partido Republicano já acabou. Agora é o partido de Donald Trump.
Especialista em Política Internacional