O “paradoxo da bondade” em tempos de guerra
“Mais do que em qualquer
outra época, a Humanidade
está numa encruzilhada.”
Woody Allen
Após uma análise aprofundada sobre a natureza e a evolução da tirania, da crueldade e da bondade, Richard Wrangham chegou à conclusão de que a capacidade humana para planear e organizar teve um duplo efeito: por um lado, permitiu a supressão do excesso de violência, contribuindo para uma pacificação relativa dentro de cada comunidade e facilitando a formação de alianças entre grupos distintos; por outro, permitiu o aprimoramento das metodologias e do impacto da agressão (O Paradoxo da Bondade). Esta análise de Wrangham encontra ressonância na actualidade, tendo em conta que a criação de alianças, organizações, pactos e tratados internacionais não conseguiu deter o avanço e a aplicação bélica da ciência e da tecnologia, nem a persistência de numerosos conflitos e catástrofes humanitárias - muitas vezes exacerbados ou perpetuados por insanidade institucional.
Acresce, no âmbito do “paradoxo da bondade”, que certos conflitos atraem os holofotes globais enquanto outros são relegados à escuridão (Breaking the Silence: The 10 most under-reported humanitarian crises of 2023). A reverberação de um conflito, a importância que lhe damos, parece estar ligada a factores como a proximidade geográfica e denominadores comuns, tais como, etnia, religião, língua e afinidades históricas (C. Blattman, Why We Fight: The Roots of War and the Paths to Peace). Esses elementos, quando presentes, tendem a evocar uma empatia mais profunda e a conduzir a um apoio mais eloquente. A invasão da Ucrânia, por exemplo, suscitou uma efusão global de empatia, participação e solidariedade, ilustrando o papel dos referidos ingredientes na determinação do grau de atenção emergente.
Importa sublinhar que esta faceta humana é nutrida e acentuada pelos media, uma vez que existe uma correlação directa entre a visibilidade mediática de desastres humanitários e a mobilização de recursos a eles destinados, quer provindos do público, quer sob a forma de acções institucionais (Media, Bureaucracies, and Foreign Aid - A Comparative Analysis of the United States, the United Kingdom, Canada, France and Japan of US foreign disaster assistance).
Contudo, mesmo os conflitos que atraem a atenção dos media, tendem inicialmente a provocar uma onda de atenção generalizada e solidariedade face ao sofrimento alheio e, em seguida, um certo nível de indiferença (uma normalização deste sofrimento, possivelmente como um mecanismo de defesa) e uma mudança de enfoque. Lembremos de novo a invasão da Ucrânia que ressoou profundamente no mundo ocidental, eclipsando conflitos pré-existentes. Trata-se de uma colisão que transcende a dimensão regional, exibindo o sinistro potencial de se transformar numa conflagração global, contendo uma ameaça de escalada nuclear e tendo severas implicações geopolíticas.
Não obstante, a incursão russa foi subitamente suplantada pelos vis actos de terrorismo cometidos pelo Hamas a 7 de Outubro que espoletaram uma impiedosa campanha militar por parte do Estado israelita. Verificou-se uma reverberação sísmica a nível global que colocou o Médio Oriente no centro do mundo. Por cá o tema foi, contudo, relegado para segundo plano, no decurso de conturbações políticas que espoletaram um processo eleitoral.
Sucederam-se, então, como questões temporariamente centrais, escolhas partidárias, campanhas, eleições, contagem de votos, idas a Belém e prognósticos e comentários atinentes à composição do Governo.
É inegável, portanto, que o mundo se concentra em determinados conflitos e catástrofes, negligenciando outros; que quando essa atenção se manifesta, se revela como efémera e passageira; que o interesse público tende a diminuir à medida que certa crise persiste, resultando numa redução no grau de assistência, auxílio e apoio previamente configuradas como indispensáveis para a causa em questão. Vivemos, decididamente, numa era caracterizada pela transitoriedade dos interesses, pela inconsistência das causas que nos movem e por uma atenção que oscila e vacila, sem encontrar um ponto de fixação duradouro.
Esta realidade é vividamente ilustrada pelo fenómeno global que é o TikTok, uma plataforma que congrega aproximadamente 1,7 mil milhões de utilizadores activos (whatsthebigdata.com), que se dedicam à partilha de vídeos de curtíssima duração, numa esfera digital que se sustenta num algoritmo cujo princípio fundamental é evitar o tédio. Este fenómeno não é meramente indicativo; é simbólico, servindo como uma metáfora acutilante da condição contemporânea. A popularidade estrondosa do TikTok revela uma preferência colectiva por conteúdos rápidos e facilmente consumíveis, reflectindo a volatilidade do nosso foco e o declínio da nossa capacidade de concentração prolongada e suscitando interrogações profundas sobre as implicações desta tendência em sede de desenvolvimento humano.
O desafio que se impõe é contrariar a corrente de desumanização que parece emanar deste ciclo, em que a profundidade, a substância e a constância são frequentemente sacrificadas no altar do imediatismo, da superficialidade e da transitoriedade. Como podemos, então, reverter esta tendência?
Comecemos por reconhecer que somos seres em constante evolução, cabendo a cada um de nós a responsabilidade de transcender o que nos afasta de valores essenciais à nossa “humanidade”.
Invoquemos, aqui, o conceito de “humanidade” visto como um potencial a ser atingido (e não como uma condição determinada por um contexto histórico específico), implicando um ideal de “ser” que, por sua vez, nos obriga a um “fazer”. Lembremos, por fim, que esse imperativo de “fazer” se apresenta como uma missão contínua no sentido de construção “da humanidade” e “de humanidade” - visando a bondade sem paradoxo ou, como bem disse o filósofo Gerard Legrand, “agir com humanidade”.
Nota: A autora não escreve o abrigo do novo acordo ortográfico