O país sonâmbulo
Como podemos definir Portugal? Fado, Fátima e futebol? Cada vez menos, provavelmente, apesar de este por aí andar. Sol, praia e bom peixe? Assim é, para vários milhões que nos visitam todos os anos e que valorizam especialmente aquilo que, para nós, são dados adquiridos, naturais. Mas e se estas trilogias mais sedutoras fossem substituídas por um duo menos atrativo e mais esclarecedor? Como este: Portugal, vinho e ansiolíticos. Portugal, o país europeu que mais consome vinho e onde mais se vendem medicamentos ansiolíticos e antidepressivos.
Poder-se-ia dar o caso de haver uma explicação económica para isto. Ambos são bens francamente baratos em Portugal. Nem discutindo a bondade disso, creio que é um facto. Dois ou três euros ou menos compram uma garrafa de vinho. Dois ou três euros ou menos compram uma caixa de ansiolíticos. O preço ajusta e é um indutor da procura, como sabemos, e do seu reverso.
Na História, desde os romanos peninsulares, sabemos que o peixe e o vinho eram elementos quotidianos, com toda a tradição cristã ao longo dos séculos a acentuá-los - e ao vinho, especialmente - em toda a costa norte do Mediterrâneo. Como escrevia um historiador, há duas Europas, a dos que comem carne e bebem cerveja e a dos que comem peixe e bebem vinho. E nós somos inquestionavelmente parte desta última. Portanto, como não podemos fugir da nossa História coletiva, aqui a temos e deitamo-nos com ela todas as noites. Vive, irremediavelmente, na almofada ao lado dos nossos sonhos.
O dueto vinho e ansiolíticos, realidade construída nas últimas décadas do século XX, tem, na verdade, a mesma fonte. Aquilo que foi sublimado na literatura e no imaginário coletivo como “saudade” e que, provavelmente, poderá também ser descrito clinicamente como uma enorme propensão para a ansiedade. Que é uma doença.
Dir-se-á: mas hoje tudo pode ser uma doença! Eu próprio dava aos meus alunos do 1.º ano de Direito, há alguns anos, um exemplo para pensar - uma sentença de um tribunal alemão que condenou o Estado alemão a pagar a um seu nacional uma vida noutro país que não a Alemanha, com base num diagnóstico médico validado de que este era “alérgico à Alemanha”...
Pois, mas esta é a nossa. Pode ser genética, pode ser construção coletiva ao longo do tempo, pode ser efeito colateral da mescla que nos caracteriza de industrialização tardia, beatice, pobreza e violência doméstica, aditada com a fantasia imperial e a emigração maciça. Não sabemos.
Sei, por exemplo, que nos Anos 30 e 40, quando foram criados os designados “Institutos de Criminologia”, em Lisboa, Porto e Coimbra, dos seus primeiros estudos publicados foram análises, até estatísticas, sobre a relação entre o consumo de álcool e a criminalidade. Criminalidade que, já agora, ao contrário do mito oposto que alimentamos, era extremamente violenta e frequente.
Em suma, acho que devia fazer alguém pensar o facto de sermos o país da Europa onde mais vinho se bebe e mais se tomam ansiolíticos per capita. Um país basicamente sonâmbulo ou sempre a tentar sê-lo, de gente em ressaca seguida de êxtases momentâneos e tudo de volta outra vez. Eu sei que este discurso não é da moda e que muitos elegeriam temas raciais, de desigualdades ou de género como pauta prévia de leitura para diagnósticos e explicações. Mas isto também existe e, se calhar, é até o que existe antes do resto.