O mar, a selva e as regras
Há pouco mais de um ano, quando a inflação sequente à invasão da Ucrânia pela Rússia atingia o seu primeiro pico, perguntei a um diplomata meu amigo se seria verdadeiramente relevante para os portugueses o Donbass ser controlado pela Rússia ou pela Ucrânia. Colori a minha questão com exemplos de preços de produtos alimentares e de combustíveis, que em alguns casos tinham duplicado em poucos meses, para ilustrar o impacto da guerra neste lado da Europa.
Explicou-me que a questão territorial era secundária tratando-se de uma questão de princípio. Considerou fundamental defendermos uma ordem mundial baseada em regras, pois sem um sistema internacional com normas claras, teríamos a lei da selva e Portugal não tem capacidade de defender os seus interesses num mundo assim. Só temos boas possibilidades de nos afirmarmos num contexto em que há regras que todos cumprem. Aceitei a explicação, pensando imediatamente no processo da extensão da nossa plataforma continental, que decorre no quadro da ONU. Possivelmente, não conseguiremos jurisdição sobre toda a área que pretendemos, mas é provável que o país obtenha ganhos de território marítimo nunca vistos desde a era dos descobrimentos. Isto tudo, sem termos de recorrer a qualquer tipo de ação militar.
Contudo, este mundo de regras internacionais é frágil e nunca funcionou plenamente. É visível que quando as regras interessam aos mais fortes, são invocadas e cumpridas, e quando não interessam são ignoradas.
Contemplando a história do último meio século encontramos exemplos no Vietname, Iraque, Panamá, Granada, e agora na Ucrânia. A tendência que emerge é que o multilateralismo e as regras internacionais são cada vez menos eficazes na salvaguarda de países fracos, sem armas e sem aliados de peso.
Portugal, como outros países europeus, tem de tomar medidas para prevalecer neste mundo híbrido entre a selva e as regras internacionais. Temos de investir mais em defesa nacional e em armamento adaptado ao território que temos. Sendo difícil obter armas nucleares, o país tem de ter mais submarinos – porventura, a arma convencional com maior poder de dissuasão. Mais de 95% do território nacional é marítimo. É indispensável reforçarmos da nossa capacidade de vigilância e de projeção de poder no mar.
Recentes atos de sabotagem a gasodutos e a cabos submarinos evidenciam as vulnerabilidades deste tipo de infraestruturas críticas. Portugal, com a sua posição geoestratégica singular, tem responsabilidades especiais neste campo. Nas telecomunicações somos ponto de passagem e de amarração de dezenas de cabos submarinos que interligam os cinco continentes.
Temos estruturas de produção de energia por fontes renováveis ao largo da nossa costa e, nos próximos anos, queremos ter 2 GW de potência instalada de energia eólica offshore. Outras infraestruturas energéticas importantes passarão pelas nossas águas, como o cabo do projeto Xlinks que visa transportar para o Reino Unido eletricidade gerada por fontes renováveis no Norte de África.
Esta centralidade marítima e digital exige do país um maior investimento em meios de vigilância e de defesa. Simultaneamente, a fragilidade do sistema de regras internacionais recomenda termos, em cada momento, pelo menos um amigo próximo entre as principais potências militares mundiais. Se pudermos ter dois amigos, como na última grande guerra, ainda melhor.