O 'Manifesto 50': da vida das pessoas

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A Maria morreu, alegadamente por negligência médica, num Hospital público, ao dar à luz a segunda filha.

A bebé sobreviveu. O António ficou viúvo com as duas filhas.

Procurou que se fizesse justiça e deu entrada com uma ação no Tribunal Administrativo.

Passaram 14 anos e o processo ainda nem tem audiência prévia marcada.
Por este andar vão passar outros tantos anos até que conheça a sentença definitiva sobre o trágico acontecimento que lhe revirou a vida.


O António ficou a saber que, afinal, o artigo 20.º, n.º 4 da CRP, que diz que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, não tem qualquer correspondência com a realidade.

O Manuel andou emigrado a ganhar a vida, juntou dinheiro e conseguiu regressar a Portugal e concretizar o sonho de construir a sua casa.

Investiu ali tudo o que tinha.

Passado um tempo construíram uma ETAR mesmo à frente da casa.
Ficou sem vistas com aquele mamarracho à frente, o barulho persistente impede-o de descansar e o cheiro nauseabundo não permite abrir sequer as janelas quanto mais fazer uma refeição no jardim.

O Manuel desesperou, mas confiou na Justiça e resolveu intentar uma ação no Tribunal Administrativo para ser indemnizado pelos danos causados.

Decorridos 10 anos a marcação do julgamento afigura-se como uma miragem e a decisão final, uma autêntica utopia.

A Joana é médica, competente e esforçada, sentiu-se prejudicada quando foi preterida num concurso no âmbito da carreira hospitalar.

Informou-se dos seus direitos, fez contas ao que ia gastar e, acreditando nos tribunais, foi em busca da Justiça.

Passaram 11 anos e a ação da Joana jaz num Tribunal Administrativo.

Paz à sua alma.

O Frederico era sócio de uma empresa pujante e investiu ali toda a sua vida.

Os outros dois sócios, conluiados entre si, gizaram um plano para correr com o Frederico.

De um dia para o outro este viu-se destituído do conselho de administração e sem a quota.

Desesperado, teve de retirar os filhos do colégio e vender a casa.

Viu a Justiça como a luz ao fundo do túnel da escuridão que sobre ele e a sua família se tinha abatido.

Recorreu aos tribunais e tem uma ação a correr no Juízo do Comércio há mais de 9 anos e sem o julgamento feito.

A Luzia foi lesada e moveu uma ação em defesa dos seus legítimos interesses.

A secretaria do Juízo Central Cível demorou mais de um ano a tirar as fotocópias da ação para que os réus fossem citados.

A Luzia sabe que vai ter de esperar anos e anos até que consiga obter uma decisão do tribunal.

Tem a vida suspensa.

A Ana é vítima de violência doméstica.

Perdeu a conta às vezes que apresentou queixa do agressor e das que foi à Medicina Legal para que fizessem a perícia às lesões, comprovativas das bárbaras agressões perpetradas pelo marido.

Disseram à Ana que o crime de violência doméstica era de investigação prioritária e que entre o marido e a mulher a sociedade tem de meter a colher.

A Ana acreditou.

Mas o tempo passa e o que sabe é que tem a vida virada do avesso.

Teve de mudar de terra, esteve com os filhos numa casa-abrigo, o marido continua comodamente instalado em casa e o julgamento tarda.

O Xavier teve um acidente de viação e ficou com sequelas graves que o incapacitam para as atividades da vida diária e para o exercício da sua profissão.

Quis demandar a companhia seguradora, mas as custas judiciais eram incomportáveis para as suas possibilidades económicas.

O Xavier conhece o artigo 20.º da CRP que assegura a todos os cidadãos o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrando que a Justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Requereu que lhe fosse concedido apoio judiciário.

O Xavier vive, por favor, em casa de uns tios, mas têm economias separadas.

A Segurança Social contabilizou a soma global de todos os membros do agregado familiar e negou o apoio requerido.

Ao Xavier foi-lhe negado, pelo Estado, a possibilidade do recurso aos tribunais.

A Rita foi presidente de uma câmara municipal.

Às 7.00 horas da manhã de um qualquer dia foi surpreendida com uma busca domiciliária, entrando-lhe 15 pessoas em casa.

Durante a busca, rebentaram-lhe as caixas das persianas, partiram os tetos falsos e deixaram a casa em pantanas.

A Rita quis saber quando é que seria ressarcida dos estragos que lhe causaram.
Nunca, disseram-lhe.

A Rita tentou consultar o processo através do seu advogado, mas disseram-lhe que não era possível porque o inquérito estava em segredo de justiça.

Mas a Rita via as notícias do seu processo em alguma comunicação social! Como era possível?!

Então o inquérito não estava em segredo de justiça?

O artigo 20.º, n.º 3 da CRP não dispõe que: “A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça”?

A Constituição pode ser assim grosseiramente violada?!

Quando, por fim, a Rita teve acesso aos autos, constatou que tinha sido escutada durante muito tempo, que os prazos legais tinham sido violados e que, das escutas, não resultava nada que justificasse os meios intrusivos de que tinha sido alvo.

A Rita foi julgada e absolvida, mas, desta via sacra, só a absolvição não teve visibilidade mediática.

Os casos sumariamente relatados supra são meros exemplos do que se passa no Sistema de Justiça.

Aqui se decidem assuntos importantes da vida das pessoas, dos Direitos, Liberdades e Garantias.

É precisamente disso que se trata, da vida das pessoas.

E por isso considerei um imperativo categórico a subscrição do Manifesto 50, hoje com + 50 +50, número que continua a crescer.

A morosidade dos Tribunais Administrativos e Fiscais é inaceitável e consubstancia uma autêntica denegação de justiça.

Qualquer cidadão que tenha recorrido a esta jurisdição sabe que isto é verdade.

Aqui é normal a anormalidade de um processo poder durar mais de 20 anos.

A morosidade é, de resto, transversal a todo o Sistema de Justiça, causando grave prejuízo aos particulares e às empresas, sendo um dos principais custos de contexto e entropias no desenvolvimento da economia.

A Justiça é uma área de soberania e o alicerce e cimento do Estado de Direito Democrático.

Precisamente por isso, a todos tem de ser assegurado o acesso à Justiça, o que não se compadece com as exorbitantes custas judiciais em vigor e com as ineficiências do sistema de concessão de apoio judiciário.

A Justiça, para o ser, tem de ser realizada em tempo útil e em obediência ao respeito pelos Direitos Fundamentais.

Ao olhar para o universo que o Sistema de Justiça abarca é patente o desinvestimento a que tem sido votado.

A Justiça tem de ter os meios necessários para cumprir a sua função de soberania.

Veja-se o estado do Sistema Prisional e da reinserção social, só falado nos últimos tempos e pelas piores razões, a morosidade dos inquéritos criminais, com total desrespeito pelo cumprimento dos prazos, o deficiente funcionamento dos tribunais, afundados ainda em mais processos devido à greve, legítima, diga-se, dos funcionários judiciais.

Veja-se a ineficácia dos Juízos de Execução ou a demora na realização das perícias.
Veja-se o estado calamitoso dos Registos e Notariado, a lentidão do CITIUS e do SITAF e tudo o mais que não cabe no espaço deste artigo.

Não obstante algumas alterações legislativas, o Sistema de Justiça e a cultura e mentalidade vigentes, têm permanecido praticamente imutáveis no tempo.

Há um tempo para as coisas e este tem de ser o tempo da Justiça.

Impõe-se uma reforma que aproxime a Justiça dos cidadãos, que a torne mais eficiente, moderna e acessível.

E que cumpra a CRP.

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