O futuro de Gaza chama-se Palestina
Compreendo todas as preocupações e as interrogações sobre o futuro de Gaza. Como também percebo que, nos últimos dias, tenha surgido alguma confusão sobre o novo formato da sua governação, uma vez terminada a atual situação de destruição e de massacres. Tenho recebido uma torrente de chamadas e de consultas sobre o assunto. Mas a resposta é simples, do ponto de vista da prática internacional e do direito que cada povo tem de decidir sobre a sua independência e o seu modo de governação, desde que respeite a Carta das Nações Unidas e todas as outras normas que regulam as relações internacionais.
O território, mesmo no estado de destruição em que se encontra, depois de cerca de 15 meses de bombardeamentos sistemáticos, de crimes de guerra e de um condenável cerco humanitário, faz parte integrante da Palestina. O Direito Internacional é bem claro sobre a matéria. E não poderá haver uma solução chamada dos “dois Estados”, um israelita e outro palestiniano, se não integrar a Faixa de Gaza na soberania palestiniana. Não é fácil consegui-lo, estamos ainda muito longe de uma solução de paz, mas não há margem para dúvidas sobre a questão. A comunidade das nações já afirmou várias vezes que o futuro só será possível se se conseguir estabelecer um país palestiniano, que possa viver em paz com Israel e que seja viável.
A população da Faixa tem as suas raízes familiares e históricas no território. Não pode ser forçada a abandonar Gaza e ir viver na periferia da vida de povos vizinhos, sejam eles os egípcios ou os jordanos. Ou quaisquer outros. Foi isso que aconteceu a multidões de palestinianos em 1948 e de então até hoje. Não resolveu em nada o conflito israelo-palestiniano. Mais ainda, transferiu toda uma série de desafios, dificuldades e situações de miséria para países limítrofes. Uma das nações que mais tem sofrido com as vagas sucessivas de expulsões de palestinianos das suas terras ancestrais tem sido o Líbano. Era em meados do século XX citado como a “Riviera do Médio Oriente”, para utilizar uma expressão que esteve em voga esta semana. Agora, o Líbano é um país em crise profunda, quer internamente quer nas relações com Israel e com os refugiados palestinianos.
A Europa e os Estados respeitadores das normas internacionais têm de ser mais assertivos no que diz respeito ao Médio Oriente. A começar pela questão da Palestina. Quem leva estas coisas a sério, sem medo e com dignidade, sabe bem o que significa ser mais assertivo.
Mais: temos de sair de uma lógica de hostilidade e conflito entre os povos da região. E de fazer aplicar as decisões do Conselho de Segurança da ONU, do Tribunal Internacional de Justiça e respeitar os mandatos do Tribunal Penal Internacional. Este é o mundo que ambicionamos e que deve começar por se aplicar à Palestina, incluindo à Faixa de Gaza. Não queremos voltar à Idade Média, nem ressuscitar Hitler ou Estaline.
A manutenção e o cumprimento do cessar-fogo atual são o primeiro passo. Infelizmente, penso que não irá durar, ao ouvir os comentários em Washington proferidos por Benjamin Netanyahu. Mas vamos ansiar que sim.
Depois, para alicerçar uma paz real e duradoura, será necessário desenhar um plano que permita reconstruir Gaza, compensar a sua população e integrá-la num Estado palestiniano. A Autoridade Palestiniana deve ser incentivada a reformular-se e a reforçar-se seriamente. Tem de se transformar numa administração capaz de gerir um Estado, muito para além de uma amalgama de militantes. Os colonatos ilegais devem ser expropriados e transferidos para a posse da Palestina. A ordem e a criação de uma autoridade central legítima e reconhecida pelos palestinianos e pelas Nações Unidas são questões fundamentais e urgentes. É preciso estabelecer um plano que seja considerado como válido por todos. Cabe à comunidade internacional, e não apenas à União Europeia ou a um ou outro Estado, estimular, ajudar e trabalhar nesse sentido. E aproveitar a experiência da UNRWA, o programa credível e altamente especializado da ONU.
Este tem sido, ao longo de oito décadas, o maior desafio do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tem de saber, finalmente, encontrar a resposta. Caso contrário, o pilar político da ONU não conseguirá manter a reputação que lhe resta e acabará por deixar de ter razão de ser. Ou seja, existirá formalmente um Conselho de Segurança num mundo cada vez mais complicado, dividido e caótico. Um mundo entregue aos desmandos de quem manda em duas ou três superpotências.
Conselheiro em Segurança Internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU