O fim do governo em Espanha
A edição impressa deste jornal não tem caracteres suficientes para descrever a cornucópia de casos de corrupção, peculato, nepotismo, tráfico de influências, ataques à independência do Poder Judicial, vulneração da liberdade de imprensa e, no fundo, de erosão institucional que afligem Espanha.
Dada a ausência geral de notícias deste lado da fronteira, imagino que isto surpreenda o leitor português. Olhemos de maneira telegráfica apenas para os dois escândalos mais recentes, conhecidos nas últimas semanas.
Comecemos por Leire Díez, militante do PSOE, que se reuniu com empresários visados por processos judiciais para lhes pedir informações que comprometam os polícias e o magistrado do Ministério Público que investigam o Partido Socialista e o governo. Em troca, Díez ofereceu benefícios judiciais. Estes e outros factos são públicos graças a gravações áudio de uma reunião. A forma e o conteúdo das conversas são dignos da Camorra.
Soará estranho que esta senhora se sinta autorizada a oferecer vantagens judiciais. Mas a separação de poderes em Espanha já teve dias melhores. De resto, o Fiscal Geral do Estado - cargo equiparável a procurador-Geral da República - está constituído arguido, suspeito de revelar segredos de justiça a favor dos interesses políticos do PSOE e do governo de Pedro Sánchez.
Em paralelo, alegadamente, Díez ofereceu a meios de comunicação social um vídeo de cariz sexual protagonizado por um magistrado do Ministério Público.
Também em paralelo e também alegadamente, tentou silenciar Víctor de Aldama, empresário suspeito de corrupção, evasão fiscal e outros desmandos que implicam, pelo menos, um ex-ministro de Pedro Sánchez - Aldama está a colaborar com a Justiça e, aparentemente, com a imprensa.
Confrontado com o escândalo, o PSOE despachou Díez como uma simples militante de base. A própria defendeu-se dizendo que estava apenas a documentar-se para escrever um livro sobre as cloacas do Estado. Contudo, os factos demonstrados inviabilizam por completo estas explicações. É evidente que Díez actuou a mando de alguém. Resta saber de quem.
Passemos ao segundo caso: jornais afins ao governo publicaram mensagens de texto de um militar da Guardia Civil que, lia-se, queria colocar uma bomba contra Sánchez. Este militar pertence à UCO, unidade que lidera as investigações aos casos de corrupção, tráfico de influências e peculato que visam o PSOE, o governo e até familiares do chefe do Executivo.
O caso era de enorme gravidade. Na melhor das hipóteses, seria um magnicídio. Na pior, o regresso ao passado de golpismo. A indignação pública foi rápida, contundente e generalizada. Não era para menos. Vários ministros pediram a demissão do militar, apresentado como um agente de uma conspiração contra o governo.
No entanto, dias depois, a troca de mensagens foi divulgada na íntegra. A história fora contada ao contrário: porque a UCO está a investigar o governo, o militar temia ser alvo de um atentado. Ou seja, a conversa foi truncada com intencionalidade. Entregou-se à imprensa um conteúdo manipulado para descredibilizar a força de segurança que lidera as investigações que incriminam o poder.
Insisto, são apenas os episódios mais recentes numa longa e variada lista de casos da qual resulta uma clamorosa deriva iliberal. Não obstante as diferenças de escândalo para escândalo, parece haver um padrão: a defesa do governo e do PSOE faz-se atacando quem o investiga, sejam órgãos de polícia criminal, juízes ou jornalistas. O estrago institucional terá consequências severas.
É verdade que Pedro Sánchez sobrevive a tudo, mas o seu governo acabou. Só a elevadíssima polarização vivida em Espanha o manterá em funções. A escassa capacidade de governar - há dois anos que não consegue aprovar um Orçamento do Estado - tornar-se-á nula e arrastará o país para um marasmo perigoso.
Politólogo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.