O embalo do cinismo

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Causa desconcerto acompanhar o processo político em Moçambique. A violência exercida sobre manifestantes e membros da oposição é evidente motivo de agravo e faz temer o pior. Mas o maior incómodo talvez esteja na dificuldade em perceber o que está em curso. Afinal, a fraude eleitoral, que parece ser a causa dos tumultos, é tudo menos inédita.

É verdade que perpassou todo o processo, indo da campanha à contagem dos votos. É também verdade que o despudor colocou a Frelimo como vencedora em todas as províncias, coisa nunca antes vista. Contudo, o carácter autoritário do regime, bem como a falência do modelo económico instituído na década de 1990, não são propriamente notícia.

A novidade está no aparecimento de um pastor evangélico com proclividade messiânica que representa o cansaço com o statu quo. Venâncio Mondlane é o novo aríete contra o regime. Tão ou mais importante, personifica a insatisfação com a velha oposição, cuja lealdade, em regra, a Frelimo garante com pequenas prebendas do grande espólio estatal que controla. Embora proveniente do establishment, Mondlane inova na forma e no conteúdo. Aproveitou a oportunidade e alimenta esperança.

O seu carisma convenceu boa parte da população moçambicana e atravessou fronteiras para persuadir algumas elites portuguesas de que chegou, por fim, a mudança. Isto colocou o Governo português sob pressão. Em particular, o ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel, que representou Portugal na tomada de posse de Daniel Chapo, o candidato da Frelimo investido na quarta-feira como o quinto presidente daquela república.

Nem mesmo o facto de Rangel ser uma solução de recurso mitigou a contestação - o normal seria que Portugal fosse representado pelo Chefe de Estado, logo a ida do ministro transmite óbvias reticências por parte de Lisboa.

Sopesados os factos, as críticas a Rangel são frágeis. Se o cuidado com a prática democrática fosse determinante para as relações bilaterais, no chamado ‘mundo lusófono’ Portugal estaria limitado ao trato com o Brasil e Cabo Verde - mesmo assim, sem abdicar de doses generosas de boa vontade e de pontual cegueira estratégica.

As comparações com a Venezuela também coxeiam. Ao contrário do que ali aconteceu, não é claro que em Moçambique a oposição tenha vencido as eleições. Acresce outra diferença, porventura cínica, embora nada irrelevante no plano diplomático: Chapo diz-se disponível para dialogar e assume os problemas do regime, o que contrasta com a postura jactante de Nicolás Maduro, que recusou todas as oportunidades de reconciliação nacional.

Aproveitando o embalo do cinismo, aponte-se uma razão adicional, inconfessável em público: Portugal é hoje quase irrelevante na Venezuela, sem qualquer capacidade de influência estratégica, enquanto em Moçambique essa influência é maior. Está longe de ser o músculo potente imaginado pela claque da lusofonia, mas existe. A sensatez na escolha das batalhas deve ser prioritária para um pequeno país com parcos recursos.

Nada se faz em Moçambique dinamitando pontes com a Frelimo, a real proprietária do aparelho do Estado que, aliás, construiu. Por outro lado, Mondlane oferece poucas garantias a Portugal, desde logo porque o valor político não se mede em decibéis. Se há crítica válida à política externa portuguesa, ela resulta de algo que nos ensinou a série Yes, Minister: o Ministério dos Negócios Estrangeiros não existe para fazer coisas; existe para explicar as razões pelas quais há coisas que não se fazem.

Politólogo.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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