O ecrã da nossa felicidade
Recentemente, o jornalista e comentador político Ezra Klein dedicou uma edição do seu podcast no New York Times (The Ezra Klein Show) aos modos de atuação mediática de Donald Trump. Objetivo: tentar compreender como, na aparente desordem das performances públicas, a avalancha das suas cenas televisivas (assinatura de ordens executivas, entrevistas, depoimentos, etc.) configura uma estratégia de ocupação, formatação e domínio do próprio espaço mediático. A “mensagem” de Klein pode resumir-se no reconhecimento de uma das principais atividades de Trump. A saber: ele mente. O título do episódio não podia ser mais esclarecedor: “Não acreditem nele”.
Klein não se apresenta como sacerdote do que quer que seja, não tem uma chave mágica para o cofre dos segredos deste nosso mundo de imagens e sons. Nada disso. Ele faz aquilo que, curiosamente, muitos políticos e comentadores evitam: trata-se de pensar a política como uma prática que se tornou indissociável das formas e narrativas televisivas, recusando encarar o jornalismo, em particular o jornalismo televisivo, como um dispositivo alheio ao modo como vivemos as nossas vidas (individual e coletivamente).
Klein remete os modos de atuação de Trump para um momento revelador em que Steve Bannon, o seu principal estratega na Eleição Presidencial americana de 2016, definiu as regras de um modo muito concreto de entendimento de relação com os meios de comunicação. Foi numa entrevista gravada a 17 de março de 2019, para o programa televisivo Frontline (PBS), esclarecendo o funcionamento de uma Zona (com maiúscula!) que, segundo Bannon, importa controlar. Disse ele: “O partido da oposição são os media. E porque são estúpidos e preguiçosos, os media só se conseguem focar numa coisa de cada vez. Tudo o que temos a fazer é inundar a Zona. Todos os dias lançamos-lhes três coisas, eles vão morder uma delas e nós conseguimos fazer tudo o que queremos - bang, bang, bang! Os tipos nem sequer vão conseguir recuperar, o que temos a fazer é agir com a velocidade de uma bala.”
As palavras de Bannon são tanto mais desafiantes quanto não decorrem de qualquer modo “tradicional” de manipular a atividade jornalística. Ele não estipula a corrupção e compra do discurso jornalístico, mas sim a sua redução a um sistema de reações automáticas, desconexas, ruidosas (em sentido literal ou simbólico) que o transformem num espectáculo sem consciência. Para o sistema de Bannon, a única coisa que conta é a manutenção de um discurso “barulhento” que permita a um político como Trump seguir em frente e consumar as suas políticas.
Infelizmente para todos nós, mesmo num contexto em que não se vislumbram ameaças antidemocráticas como as que Trump personifica, o sistema postulado por Bannon existe através de aparatos, por certo mais benignos, mas fundados num mesmo método de apagamento das consciências. Entregue à sua despersonalização, o ecrã televisivo deixa de funcionar como polo de algum tipo de informação ou conhecimento, para apenas existir como teatro da sua própria agitação visual e sonora: ninguém comanda o sistema, nem sequer um qualquer Feiticeiro de Oz escondido - tudo funciona por inércia.
Eis uma lição incómoda: Steve Bannon, conselheiro de Trump, ajuda-nos a compreender o ruído mediático.”
Os exemplos são quotidianos. Por vezes, transportam a sua involuntária caricatura. Quem não se lembra do dia em que Portugal acordou sob a ameaça de uma pobreza generalizada, não por causa dos desequilíbrios do seu sistema económico, mas porque tinha sido detetada uma... epidemia das raspadinhas! Durou 24 horas, não sem que houvesse vozes muito sérias proclamando a necessidade de os empregados das lojas de apostas tirarem “cursos” (sic) para atenderem os clientes septuagenários como eu - agradeci, mas não houve mais notícias sobre o assunto.
E que dizer do facto de as performances desportivas além-fronteiras serem compulsivamente associadas a obscenas histerias nacionalistas. Com o futebol, claro, mas também a canoagem ou o andebol... Uma simples Medalha de Bronze faz-nos reviver a chegada de Vasco da Gama à Índia, mas até mesmo uma sucessão de derrotas pode ser o emblema de uma dignidade nacional que nos faltava descobrir.
Entretanto, se um crítico de cinema se atrever a celebrar o impacto de um filme português algures num contexto fora de portas, vozes não faltarão para denunciar o “intelectualismo” de todos aqueles que promovem o cinema para estrangeiro ver... Decididamente, a nossa felicidade está garantida - bang, bang, bang!
Jornalista