O Corpo Aprisionado
Quando abro os olhos de manhã, o teto do quarto é um muro existencial.
Não tenho vontade de me mexer. Aquela cor pálida do teto olha para mim como um sinal de stop gigantesco. Recordando-me, todos os dias, que o meu caminho está bloqueado. Negado. Por um corpo inerte, doente, decrépito. A inércia é o alimento das manhãs. A tristeza é a tonalidade. Os minutos são horas. As horas ali caídas, num olhar perdido, são anos de angústia. Tudo se confunde nesse tempo. Passa-me pela memória o que fiz, com quem vivi, como experienciei todo um mundo de angústias, mas também de enormes conquistas. Pelo menos foi assim que as senti. Às vezes, lembro-me mesmo dos meus pais, dos meus irmãos, e como na verdade não fui totalmente feliz naquela família.
Já oiço a Matilde na cozinha a fazer o pequeno-almoço dos miúdos. Oiço a azáfama matinal deles. Não consigo mexer-me. Não estou para eles. Volto aos pensamentos e estes irrompem com uma enorme culpa. Não vejo, como hoje, posso ser alguém para a minha família. Não vejo, não sinto. A dor corrói-me de forma visceral. Do corpo até à alma, levando-me toda a chama de energia para poder ser. Para poder ser. Sou um corpo inerte, que liga pensamentos e carradas de emoções, mas incapaz de estar nas relações mais próximas de forma humana, afetiva, ligada, em trocas de experiências. Não é isso que todos fazem? Trocam experiências uns com outros, consomem, no bom sentido, uma vida a que supostamente têm direito? O passado foi-se, não sinto possibilidades no presente, e não há esperança no futuro.
Passei anos sem pensar no corpo. Tive-o, por muitos anos, como algo adquirido. Estava simplesmente lá! Habitava-o sem consciencializar a sua importância. É como se o vivesse como um veículo que me deslocava pela vida. Apenas tinha de lhe proporcionar a energia para fazer o seu trabalho. Servir-me. É estranho, porque na verdade, houve muitos momentos na vida em que pensei em mim como se este corpo fosse um vassalo. Servia-me. Em muitas ocasiões, contudo, ele era a minha apresentação. Representava-me perante os outros, era meu embaixador, e os outros iam considerar-me ou não pela capacidade com que ele se apresentava, pelo seu modo, pelas suas características. Ao pensar assim, hoje, não deixo de me sentir de alguma forma um impostor, que foi um egoísta para com o seu irmão de armas e de vida.
Talvez nunca tenha prestado a atenção devida. Ao corpo e ao que fui sentindo através dele. Talvez este aglomerado de doenças que me drena por dentro, sejam pelo menos em parte, uma consequência do acumular de pesos e pedregulhos emocionais. Perdido nos meus pensamentos, fechado no meu silêncio, sei que acumulei camadas e camadas de dores, sem partilhar nada com ninguém. Nada. Guardei, fechei, reservei. Na verdade, sempre pensei que fosse mais fácil não pensar em certas coisas, pô-las para baixo da carpete, deixá-las pelo caminho. Seguir em frente. Seguir em frente sempre foi para mim atalhar caminhos. Melhor e mais eficiente.
Nas raras vezes que estou com as pessoas situo-as fora do meu universo. Eu, pelo menos, já não vivo o mesmo mundo que elas parecem viver. As árvores quase que tocam a janela do meu quarto, a primavera está cá, mas eu já não estou ligado ao mundo e às pessoas. Elas perguntam como eu estou, como vão as coisas, e apesar de tudo eu respondo o habitual ‘vai-se indo’. Eu não estou cá, mas já não vivo cá. Sinto culpa por pensar isto, por sentir isto, não consigo sequer encarar os meus filhos, a minha mulher. Aos 53 anos sinto-me numa prisão corporal. Vejo o mundo, mas não lhe consigo chegar. Olho os outros nos olhos, por breves momentos, mas não lhes consigo dizer nada. A minha prisão não tem grades, nem portas de ferro, nem guardas que gritam. Na minha prisão é o silêncio que se torna mais ensurdecedor.