O Chega e as delicadas porcelanas da democracia

O Governo apresentou há pouco mais de um mês um Plano de Ação para as Migrações, através do qual está a tentar corrigir a dramática herança que recebeu. Vem fora de tempo, portanto, reclamar contra a “imigração descontrolada”.
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O chamado crime de discurso de ódio consiste na conduta punível de alguém que, através de meio de divulgação pública, provoque ou incite a prática de atos de violência, difamação, injúria, ou ameaça a pessoas ou grupos de pessoas, nomeadamente em razão da sua etnia, nacionalidade, religião, género, orientação sexual ou deficiência. Está previsto no n.º 2 do artigo 240.º do Código Penal e é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

A criminalização não afeta situações que decorram em privado. De acordo com a legislação em vigor, “exige que a conduta punível se realize no espaço público e envolva qualquer meio destinado a divulgação, o que supõe o uso do discurso verbal, o panfleto, a grafitagem, a afixação de cartazes, a utilização da imprensa e de sítios Web, bem como a colocação de mensagens na internet fora do âmbito de grupos fechados”.

É ainda exigível que “o uso dos meios de divulgação destinados a fazer a apologia ou a negação de crimes contra a paz e a humanidade tenham um efeito ou resultado discriminatório concreto, traduzido na provocação de atos de violência, na prática dos crimes de injúria ou difamação, na ameaça e no incitamento à violência ou ódio contra “pessoa ou grupo de pessoas” com as características acima descritas.

Quando convoca uma manifestação “contra a imigração descontrolada e a insegurança nas ruas”, André Ventura, que conhece bem esta lei, sabe que nada neste anúncio a contesta. Afinal, quem não é contra a “imigração descontrolada”?

O Governo até apresentou há pouco mais de um mês um Plano de Ação para as Migrações, através do qual está a tentar corrigir a dramática herança que recebeu, resultado de políticas públicas que atiraram para as ruas milhares de imigrantes desprotegidos, explorados e desumanizados. Vem fora de tempo, portanto, reclamar contra a “imigração descontrolada”.

A não ser que haja outras intenções. Até porque colocar no mesmo panfleto “imigração” e “insegurança” é tudo menos inocente. Porque os partidário do Chega também não desconhecem que tipo de gente atrai este género de convocatórias (recordo as manifestações anti-imigração organizadas pelo grupo de extrema-direita 1143 que aconteceram em Lisboa, a 3 de fevereiro, e no Porto, a 6 de abril).

Não apenas os que se assumem declaradamente, não contra a imigração descontrolada, mas contra os imigrantes em geral, difundindo notícias falsas e incentivando ao ódio contra estes, como assinalou o JN, numa reportagem do passado dia 12 de agosto; mas também os que, certamente, já estão a pensar em contramanifestações. Aliás, do ponto vista da segurança, agrava o risco de violência sempre que há contramanifestações.

O direito de manifestação e a liberdade de expressão são pilares da democracia. Dentro dos limites descritos no início deste texto. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos já deixou claro que as autoridades só devem intervir quando a violência ocorre e na medida do estritamente necessário para a controlar.

A interpretação é exigente para as forças de segurança que devem garantir estes direitos e, ao mesmo tempo, assegurar que a lei não é pisada. Implica que sejam mobilizadas e atuem mal seja preciso e apenas na medida do estritamente necessário, identificando quem faça apologia do ódio e em caso de violência.

Sendo que violência numa manifestação não é o mesmo que uma manifestação violenta, não podendo, por isso, ser proibida mesmo havendo suspeitas dessa intenção.

São as delicadas porcelanas da democracia. De uma beleza enorme, tão grande, que têm de ser protegidas.

E isso também exige que da parte dos polícias não pese qualquer dúvida sobre a sua isenção na forma de lidar com extremismos, que cada vez mais estão na ordem do dia por toda a Europa.

Numa entrevista que deu ao DN / TSF, a ministra da Administração Interna, juíza-conselheira jubilada Margarida Blasco, mostrou-se intransigente com “movimentos radicais” nas forças de segurança e prometeu “tolerância zero” para com todos os que não sigam com imparcialidade a missão de garantir a ordem pública e combater a criminalidade - incluindo os crimes de ódio.

Esta semana, na sequência da reportagem já referida, segundo a qual haverá polícias ligados ao grupo 1143, do neonazi Mário Machado, a governante ordenou de imediato a abertura de um inquérito “em toda a sua extensão e profundidade, para apurar as eventuais responsabilidades disciplinares” dos elementos das forças de segurança alegadamente ligados ao grupo de extrema-direita”. É um bom princípio.

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