O beco espanhol
Em Espanha, o definhamento do governo avança por fascículos. Não há semana sem um novo motivo de espanto. Até os parcos esforços de regeneração precipitam a vertigem.
Veja-se o sucedido neste fim de semana. Pedro Sánchez apresentou uma reforma estatutária do partido que, entre outras novidades, define como infração muito grave a solicitação, aceitação ou obtenção de acto sexual em troca de remuneração. A simples necessidade de incluir esta prescrição nos estatutos - tanto quanto sei, inédita num partido europeu - delata o estado a que chegou o PSOE.
O que é mau pode sempre piorar. E piorou quando Sánchez nomeou Paco Salazar para renovar a direcção do partido. Perdido o seu círculo mais restrito para a Justiça, o presidente de governo espanhol tinha neste homem alguém merecedor da máxima confiança. Será mesmo o último sobrevivente do grupo que o içou ao poder.
A ministra da educação Pilar Alegría, indefectível do sanchismo-peronismo, não tardou em enaltecer em público as qualidades éticas e morais do recém-nomeado. Preparava-se o dealbar de uma nova era socialista. Pois bem, Paco Salazar ficou duas horas no cargo: capitulou perante acusações de acosso sexual que nem tentou desmentir.
Feministas em prostíbulos, incorruptíveis com sacos azuis, democratas a atacar a liberdade de imprensa, homens de Estado cujo poder depende da violação do espírito da lei: eis a síntese de um poder sem redenção. Sánchez declarou ter o coração tocado, mas a determinação intacta. O prognóstico da democracia espanhola é, portanto, muito reservado.
Paradoxalmente, o estado em que se encontram o Governo e o PSOE expõem a debilidade da direita, que enfrenta problemas difíceis de resolver. O primeiro afoga-a em frustração: tem votos suficientes para construir uma maioria absolutíssima, mas não sai da oposição. Recordemos que PP e Vox, em conjunto, obtiveram mais de 11.200.000 votos nas últimas legislativas, em 2023. Ora, em 2011, com menos 400.000 votos, os populares de Mariano Rajoy alcançaram a maior maioria absoluta na história da direita democrática.
Como se explica que em 2011 a direita dominasse a câmara baixa do parlamento e, 12 anos mais tarde, com mais votos, tenha ido para a oposição? A resposta está no sistema eleitoral. Em 2011, a direita estava agrupada num só partido, o PP, enquanto em 2023 os eleitores se repartiram por duas forças políticas, PP e Vox.
O que nos leva ao segundo problema. Os resultados eleitorais apelam à união das direitas, chamamento ao qual a direita radical populista resiste empreendendo uma viagem desregrada em direcção às franjas do sistema político, abraçando até os exotismos de Trump e de Putin.
Os quadros liberais-conservadores do Vox, onde estavam algumas das melhores cabeças da política espanhola, bateram com a porta. Foram rendidos por uma elite que, embora muito à direita, tem todos os vícios das esquerdas radicais e extremas: identitarismo, revanchismo, revisionismo, ausência de higiene intelectual e um desprezo indisfarçável pela monarquia. Os extremos tocam-se e a Península Ibérica é disso angustiante exemplo.
Por fim, um dilema: deve o PP manter a sua lógica institucional, na qual a direcção depende de barões regionais, ou ceder à tentação popular das primárias? A via tradicional oferece lideranças sossegadas e formais, como a actual, de Alberto Núñez Feijóo; a via plebiscitária trará alguém mais combativo e ideológico, como a presidente madrilena Isabel Díaz Ayuso, mais adequada aos ares do tempo, mas incapaz de desarmar a polarização que fustiga o país.
Após uma governação nefasta para o Estado de Direito democrático, o governo das esquerdas morreu. E a direita não sabe se está viva. Espanha é o nosso principal parceiro económico, o único país com o qual temos fronteira territorial. Devíamos olhar para isto com maior atenção.
Politólogo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.