“O anti-racismo é um acto de Amor à Humanidade”*
Adoro conversar, e procuro fazê-lo sempre de ouvidos bem despertos. Fascina-me deslindar argumentos, confrontar-me com formas de pensar, ser e estar diferentes das minhas, e até ser desafiada a reflectir sobre perspectivas que me causam discordância. A partir de conversas, já revi posicionamentos, consolidei outros, e activei múltiplas consciências.
Já aqui partilhei, por exemplo, como falar com Lia Ferreira, coordenadora da Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, me fez substituir a expressão “mobilidade reduzida” por “mobilidade condicionada”.
O racional é simples, explicava eu há cerca de um mês. Enquanto a primeira formulação me remete para uma certa menorização da pessoa, a segunda abordagem reconhece que influências externas, em concreto a forma como a sociedade está construída, limita o modo como vivemos, nomeadamente as condições de acesso aos espaços.
Creio que dificilmente teria pensado nisso se não tivesse escutado a Lia, se não estivesse disponível para reflectir para além do meu umbigo, exercício que por vezes vem acompanhado de um profundo desconforto. Chamo-lhe dores de crescimento. Poderia fugir delas, refugiando-me no mundo que conheço e resignando-me com as desigualdades que o fragilizam, mas entendo que isso seria fugir de mim, da minha própria humanidade.
Compreender que posso ser melhor a cada dia, inspira-me a tentar sê-lo, e faz-me acreditar que todas as pessoas o podem ser também, desde que tenham essa vontade e compromisso.
Por isso, subvertendo o título de um livro que recomendo, da escritora e jornalista britânica Reni Eddo-Lodge, faço questão de não deixar de falar com pessoas brancas sobre raça.
Não o faço investida de pretensões evangelizadoras, nem acometida de uma qualquer orientação masoquista, mas por ter comprovado - e continuar a comprovar - o poder das palavras. Mobiliza-me, compromete-me e responsabiliza-me observar como uma partilha de experiência, ponto de vista, ou perspectiva de vida consegue provocar mudança.
Na minha história, a leitura sempre foi via de transformação, por isso exultei com a ideia - em tempos partilhada pelo escritor José Eduardo Agualusa - de prescrição de programas de reeducação literária a pessoas de pensamento trancado. Não confundir com pessoas que simplesmente discordam do que defendemos. Falo daquelas que, pela argumentação que utilizam, evidenciam o quanto vivem alienadas da realidade, fechadas sobre si próprias, e presas a narrativas que defendem como se fossem factos.
Ignoram que conversar com quem desafia as nossas mesmices de sempre permite abrir algumas fechaduras, reconhecer preconceitos, e travar dinâmicas de discriminação.
Mas é preciso saber escutar, e há quem opte por não o fazer, talvez por acreditar que tudo o que sabe é tudo o que há para saber. Eu sei que não sei tudo, e por isso continuo disposta a conversar, a ler, e a sugerir leituras.
Para já, recomendo, além do livro Porque Deixei de Falar com Brancos sobre Raça, de Reni Eddo-Lodge, duas obras de Lilian Thuram, ambas com edições portuguesas da Tinta da China: As Minhas Estrelas Negras e Pensamento Branco. Nesta, leio muito do tanto que observo: “Sempre que se fala de racismo, a tónica é colocada nos que são discriminados”, escreve Thuram, debruçando-se sobre a importância de analisar a branquitude e os seus pactos. “Quem concebeu um discurso que coloca os brancos no topo da ‘hierarquia humana’? Quem pretende fazer crer que os negros são menos capazes? Quem decidiu que eles não teriam direito às mesmas oportunidades que os homens brancos e as mulheres brancas?” Dos questionamentos, o autor parte para respostas, esmiuçando as múltiplas expressões do “pensamento racialista branco”.
Termino com um exemplo dessa ‘máquina’, extraído de uma carta que me foi endereçada por um leitor, em discordância com o meu último artigo.
“Se não tivesse aproveitado essas coisas boas que os colonialistas deixaram, certamente andaria, lá na sua terra de origem, descalça, enrolada em panos, filho atado às costas, curvada, de catana nas mãos, a trabalhar as lavras, machambas, bolanhas e talvez fosse a terceira ou quarta mulher do soba!”
Além de me colocar ‘no meu lugar’, de ‘preta resgatada pelo salvador branco’ (tradução minha), o leitor pede-me para abandonar “o rancor, a má-língua” - que é como quem diz a capacidade de pensar pela minha cabeça, e de me libertar de grilhos colonialistas -, e insta a que demos as mãos “brancos, pretos, mestiços”. Fá-lo recorrendo a categorias racistas, criadas para nos desumanizar. Terá, seguramente, a melhor das intenções, mas elas continuam incapazes de salvar as nossas vidas negras. E, mais do que não morrer e sobreviver, nós exigimos viver. Plenamente humanos.
*Frase de Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, extraída de um vídeo divulgado pela Front Line Defenders, instituição internacional que, em 2021, distinguiu o activista com o “Prémio Anual de Defesa dos Direitos Humanos em Risco”, da região europeia.