O anti-plano

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Guardamos muitas recordações de Abril e de todo um mundo que permitiu outras vidas para os habitantes de Portugal. Na verdade, a recordação é mais dos momentos inaugurais, porque tudo resto parece adquirido: eleições livres, o Serviço Nacional de Saúde, determinados direitos laborais, liberdade de expressão, direitos das mulheres, por aí fora.

Mas de Abril, também há coisas que se extinguiram. Muitas residem ainda nas histórias e vão do património imaterial que vai passando, da oralidade aos registos mais académicos.
Dessa colecção, talvez a extinção mais sufragada seja o Serviço de Apoio Ambulatório Local, e não é por acaso: deixou obra e casas onde moram pessoas. É, portanto, visível e tangível. Mesmo extinto é um arquivo vivo.

Para os menos conhecedores da história das políticas públicas de habitação, referir que o SAAL foi um programa de construção de habitação para os moradores dos bairros à época designados de “barracas”, especialmente nas Áreas Metropolitanas de Porto, Lisboa e Algarve.

Foi um programa de curta duração, criado em Agosto de 1974 e extinto em Outubro de 1976; momento a partir do qual a afirmação pública de apoio à habitação ficou refém dos juros bonificados, o que em parte explica a assimetria de acesso à habitação dos dias de hoje, bem como o primado da construção desenfreada e densa das periferias urbanas.

Apesar da condição de urgência em que surgiu, há duas palavras do dicionário que ajudam a definir o SAAL e que devem ser transportadas como exemplo para as políticas públicas de hoje, de habitação ou outras: ajuste e processo.

Ajuste, porque teve em conta as circunstâncias de cada território e suas dinâmicas populacionais. Processo, porque foi construído com os moradores, do plano à apropriação, passando pela construção; conduzindo ao direito à cidade e ao lugar.

E não, não foi um sonho. Foi só a realidade necessária e possível, e até há processos do SAAL que correram francamente mal, mas temos de considerar a sua exiguidade temporal, os meios disponíveis e toda uma conjuntura póstuma antagónica a este tipo de processos.

O que me tem chamado a atenção na revisitação do SAAL nos últimos 15 anos é a estagnação discursiva quase só sedeada na disciplina da arquitectura. É verdade que vários projectos do SAAL correspondem ao início de carreira de vários arquitectos que se tornaram proeminentes e que os que exercem a disciplina, individualmente ou como classe, têm acessos a vários meios de produção narrativa: exposições, livros, presença nos media.

Ora, o défice dessa abordagem, mesmo que de forma involuntária, foi secundarizar a acção dos moradores dos bairros em causa, tornando-os objectos e não sujeitos activos do SAAL.

O volume 5 da Cidade Participada: Arquitectura e Democracia, organizado por Ricardo Santos e Ana Drago, lançado esta semana e dedicado ao SAAL em Lisboa, tenta recentrar esta política pública enquanto processo político da nova democracia portuguesa, uma dinâmica em que os moradores são centrais.

Escrevo esta linhas com vista para o Bairro da Curraleira, que no dia 1 de Maio de 1974 - ainda nem se percebia bem qual o sentido da revolução de 25 de Abril do mesmo ano - formou a sua associação de moradores. O povo é sábio e não haveria vazio de destino para as diversas necessidades a cumprir se houvesse mobilização. Ao fim de dois meses após a revolução, já havia dezenas de associações de moradores dos bairros empobrecidos da cidade. De Chelas à Ajuda ocuparam-se casas.

O SAAL é uma resposta política reformista para conformar a mobilização popular. A densidade do seu desenvolvimento enquanto política esteve sempre na dependência da dialéctica com os moradores.

No livro mencionado, encontramos um manuscrito inédito de Filipe Lopes, vice-presidente da Comissão Administrativa da CML entre Setembro de 1974 e Novembro de 1975, onde narra o SAAL como um espaço de anti-planeamento. Ou seja, a construção de cidade tem estado nas mãos do poder fundiário privado ou dos grandes planos que fazem transitar a especulação para a coisa pública. A mobilização popular e uma política pública que acarinhou as necessidades prementes, permitiu ultrapassar os constrangimentos da expropriação, financiamento e das bases legais que sustentam as forças actuantes vigentes.

Olhando para o dia 25 de Abril de 2024, se as centenas de milhares de pessoas que foram para as ruas dedicarem um pouco da sua energia às diversas demandas apresentadas, talvez tenhamos o nosso anti-plano.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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