Não esquecer que a Índia inventou o xadrez
Soube-se há dias que a Apple estava a fretar aviões para trazer das suas fábricas na Índia o máximo de iPhones possível, de forma a evitar um choque nos preços para os consumidores americanos. Umas 600 toneladas de smartphones! Entretanto, Donald Trump anunciou que os produtos tecnológicos estavam fora, para já, da guerra de tarifas entre os Estados Unidos e a China, o que terá sido um alívio para a Apple. Mas a notícia da Reuters dá-nos uma pista sobre como as decisões do presidente americano podem jogar a favor da Índia.
Basta pensar na diferença entre os anunciados 145% de taxas a aplicar às importações chinesas e os eventuais 26% para os bens indianos para se perceber que o quinto de iPhones hoje Made in India pode a médio prazo passar a ser um terço ou metade, em claro detrimento da China, que concentra o grosso da produção da empresa com sede na Califórnia.
Na imprensa indiana também se analisa o impacto moderado das decisões de Trump, pois as novas tarifas poupam os serviços, que representam boa parte das exportações indianas para os Estados Unidos. Ou seja, a economia indiana, que já é a quinta maior do mundo, até pode ser afetada pela guerra das tarifas (suspensa com os aliados), mas sempre muito menos do que o outro gigante asiático. Pequenas más notícias, que poderão transformar-se em boas ou muito boas notícias numa lógica de acérrima competição entre Nova Deli e Pequim, até agora com clara vantagem desta última. O PIB chinês ainda é mais de quatro vezes superior ao indiano, só ficando atrás do americano.
As perspetivas de desenvolvimento da Índia são muito otimistas, não só por partir de uma base ainda baixa, como também por ter uma população mais jovem do que a da China. Quando, em 2023, os indianos ultrapassaram em número os chineses - ambos os países hoje com 1,4 mil milhões -, não faltou quem sublinhasse o envelhecimento de uma das sociedades em comparação com a outra. E como isso ainda era mais relevante que a mera questão de qual o país mais populoso. Além de mais jovem, a Índia procura também apresentar como argumentos aos investidores estrangeiros o uso generalizado do inglês e a fiabilidade de um sistema judicial que é outro dos legados da colonização britânica terminada em 1947. Mesmo a questão da instabilidade governativa, com a democracia indiana a nesse caso não poder ser comparada com a previsibilidade do regime comunista chinês, é hoje muito relativa, dadas as sucessivas vitórias de Narendra Modi, mas também a conversão dos grandes partidos à ideia de uma economia mais aberta. O anterior primeiro-ministro, o já falecido Manmohan Singh, foi o político que no início dos anos 1990, à frente da pasta das Finanças, apostou na reforma de uma Índia até então fortemente protecionista.
Modi, que sabe que a economia indiana não demorará muito a ser a terceira mundial, só pode ambicionar ir além disso se o crescimento for sustentadamente superior ao chinês (começa a ser). E tal depende de atração de investimento, beneficiando da vontade americana e também europeia de diversificar as cadeias de abastecimento para não ficarem demasiado dependentes da China. Um caminho que será demorado e que necessita de um contexto geopolítico favorável, que parece ser o que está a acontecer, desde que a economia global não entre em crise.
Modi já esteve com Trump na Casa Branca, reatando uma boa relação que tinha sido evidente no primeiro mandato do atual presidente americano. Mas se há país que goza de crescente boa vontade por parte dos Estados Unidos é a Índia, e tanto Barack Obama como Joe Biden esforçaram-se por atrair a Índia para o campo americano, ao mesmo tempo em que iam procurando contrariar a ascensão da China. Isso viu-se tanto na busca de parceria económica como no reforço da cooperação em termos de Defesa, apesar da tradicional boa relação entre Nova Deli e Moscovo que vem da Guerra Fria. Mesmo o poder nuclear indiano deixou de ser um tabu, fazendo esquecer as sanções que Bill Clinton aplicou quando foi feita uma série de ensaios nucleares em 1998.
Se o impacto da guerra das tarifas será sempre uma incógnita, já a aproximação de Trump a Vladimir Putin traz óbvias vantagens para a Índia, pois obrigatoriamente afasta Moscovo de Pequim. Apesar da relação económica entre Índia e China ser forte, e de os dois países terem estado com a Rússia e o Brasil na origem dos BRIC, a tensão é permanente e há mesmo diferendos fronteiriços nos Himalaias de alto risco, e que nos anos 1960 até originaram uma breve guerra. A participação da Índia em exercícios militares com os Estados Unidos, o Japão e a Austrália, no âmbito do QUAD, tem que ver com a necessidade de contrariar a China, em busca de influência no Pacífico, e também no Índico, e cada vez mais próxima do Paquistão.
Usa-se muito a metáfora do xadrez para descrever o que se está a passar no tabuleiro internacional, com Trump a ser apresentado como alguém que quer inventar novas regras, o russo Vladimir Putin como um jogador exímio, e o próprio Xi Jinping também a ser descrito como mestre, mesmo que na variante chinesa. Mas não esquecer que Modi lidera a Índia, o país que inventou o xadrez, como relembra Peter Doggers, autor de A Revolução no Xadrez, livro que acaba de sair em Portugal.
Diretor adjunto do Diário de Notícias