Nuvens negras sobre Washington DC
As revelações feitas na Comissão especial da Câmara dos Representantes para investigar o ataque ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021 avisaram-nos que a Democracia americana esteve "perigosamente à beira da catástrofe" quando Donald Trump pressionou o vice-presidente, Mike Pence, a rejeitar a certificação da vitória de Joe Biden. Atentemos no que disse o congressista democrata Bennie Thompson, do Mississipi: "Trump queria que Pence fizesse algo que nenhum outro vice-presidente jamais fez. Pence disse não. Resistiu à pressão, porque sabia que era ilegal e errado. Essa coragem pô-lo em tremendo perigo."
Os trabalhos da comissão fundaram-se na combinação de testemunhos de membros-chave da anterior Administração; entrevistas gravadas com a filha de Trump, Ivanka, e o marido, Jared Kushner (ambos agora em colisão com a versão de pai e sogro) e um vídeo previamente não-revelado das horas de caos dentro do edifício. Mais de mil testemunhas ligadas ao ato infame foram ouvidas, mas outros elementos que teriam sido fundamentais, porque muito próximos do ex-presidente (Peter Navarro, Steve Bannon, Dan Scavino), recusaram-se a depor, num perturbador desafio às autoridades.
Duas testemunhas garantiram ter aconselhado Pence no sentido de que o vice-presidente não tinha autoridade para subverter a eleição: o antigo advogado de Pence, Greg Jacob, e o juiz republicano aposentado J. Michael Luttig. Pence e os atacantes estiveram separados por 12 metros. "Não sabíamos que eles estavam assim tão próximos", admitiu Jacob, que estava escondido com Pence. Documento revelado à comissão prova que Trump, a 4 de janeiro, dois dias antes da invasão, usou parecer do advogado John Eastman para convencer Pence a reverter nos estados onde a margem foi curta a favor de Biden. Trump foi informado de que o seu plano era completamente ilegal - mas fez tudo para pô-lo em prática. William Barr, procurador-geral durante boa parte da presidência Trump, só rompeu mesmo na reta final. Na sua audição assumiu:
"Ele desligou-se da realidade. Aquelas alegações de fraude eleitoral eram falaciosas, simplesmente idiotas. Não queria fazer parte daquilo".
É possível a reconciliação? Não se vê como, perante tamanha recusa da realidade objetiva. Como preservar a União com ferida assim tão aberta? Anne Applebaum, autora de O Crepúsculo da Democracia, refletiu na The Atlantic: "A coexistência é a única opção. Aquelas pessoas existem, não vão desaparecer, mesmo tendo Trump perdido. Todos os outros terão de saber viver com eles. Não há outra opção".
A 20 de janeiro de 2021, Joe Biden, na posse como 46.º Presidente dos EUA, indicou o caminho: "Sem unidade não há paz, apenas amargura e fúria. Nenhum progresso, só indignação esgotante. Não há nação, apenas um estado de caos. Temos de pôr fim a esta guerra incivil." Um ano e meio depois, esse desígnio está a falhar com estrondo. Mesmo tendo Biden obtido sólida maioria presidencial - com votação recorde em número absoluto, triunfo em estados como Geórgia e Arizona e domínio democrata nas duas câmaras do Congresso. Samuel Huntington fazia questão de nos lembrar: "A América é muitas vezes uma deceção porque continua a ser para nós, quase sempre, uma esperança." Só que isso já foi escrito há mais de duas décadas. Algo de muito profundo parece ter-se quebrado entretanto.
Trump diz que as audiências sobre o ataque ao Capitólio são "um tribunal ilegal", "um escárnio da Justiça". Alega, irresponsável, que as audições são ardil de "esquerdistas radicais" para o impedir de voltar a concorrer à Presidência. Esta reação insere-se numa escola que tem vindo a ganhar terreno em líderes iliberais como Trump, Bolsonaro ou Putin: tudo o que não for do seu interesse, por muito que seja objetivo e factual, e até visível e notório, pode ser alvo de desmentido e ataque - porque os apoiantes vão acreditar na versão do chefe e não na realidade factual.
Os sinais de que em 2024 o golpe possa ser ainda maior multiplicam-se: Trump e os seus aliados continuam a mentir descarada e despudoradamente sobre a eleição de 2020, endossando candidatos que promovem essas mentiras, colocando elementos "negacionistas" em postos estratégicos nos poderes estaduais. As "duas Américas" estão a caminhar para que uma delas (minoritária, mas muito ruidosa) comece a descolar: deixa de acreditar que o outro lado ganhou mesmo, deixa de acreditar em factos e evidências, deixa de acreditar nas instituições.
Não se perspetivam melhorias: a muitíssimo provável vitória republicana nas duas câmaras do Congresso, já em novembro, com forte peso "trumpista", promete arrasar com qualquer consequência de fundo que possa sair desta comissão. As imagens de terror a que assistimos, chocados, a 6 de janeiro de 2021 podem não fazer parte do passado - terão sido assustadora mensagem de boas-vindas para a nova era que ensombra a "colina" da Liberdade: a crescente tendência autoritária e a doença da desinformação estão para ficar.
Há nuvens cada vez mais negras a pairar sobre os Estados Unidos da América.
Autor de cinco livros sobre Presidências dos EUA