Numerologia e nós

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Os números são uma coisa curiosa. Servem para nos aconchegar nas nossas certezas e para nos inquietar nas nossas dúvidas. E ao contrário. Quase parecem pessoas, portanto. E dois conjuntos de dados chamaram a minha atenção nos últimos dias.

Um deles, publicado pela Visão no dia 7 de novembro último, tratava do tempo passado online, por país, no nosso mundo. Nos 15 primeiros lugares, quanto ao tempo médio que as pessoas entre os 15 e os 64 anos passariam diariamente online, não há nenhum país europeu. O pódio é composto pelo Quénia, África do Sul e Brasil. Depois há países tão díspares como a Arábia Saudita, o Gana ou a Tailândia.

O primeiro estado europeu, no 16.º lugar de intensidade nas redes, é a Bulgária. O segundo país ocidental do ranking é, claro, Portugal, no seu 18.º lugar mundial, acompanhado logo em seguida pela Roménia. As 2 horas e 23 minutos que os portugueses passam online  por dia não se aproximam das 3 horas e 43 minutos do Quénia, mas fazem igualmente pensar.

Fazem seguramente pensar no facto de haver todo um país que se escusa a lidar com esta realidade e vive e decide como se o universo online não existisse ou fosse uma espécie de declinação menor da realidade. Não, não é. É a realidade para grande parte de nós e até a única para muitos.

Não quer isto dizer que o Estado e os serviços e a economia devam apenas ser desenhados para este meio de acesso e para esta realidade, mas, de facto, há aqui qualquer coisa que provavelmente não está a ser inteiramente integrada nas nossas decisões coletivas. Como todos os números, deveriam ser devidamente detalhados e analisados - na primeira expressão bruta, somos todos absolutamente santos ou absolutamente pecadores e, logo a seguir, vêm todas as matizes, necessidades, absurdos.

Os outros números são os da diferença entre a perceção da intensidade da imigração em diferentes países e da sua realidade objetiva. Por exemplo, de acordo com os dados divulgados pelo Our World in Data, em outubro passado, no Japão a perceção dos seus residentes sobre o número de estrangeiros no país indicaria que seriam 10%. Na verdade, são 2%. Em Itália, 21% - mas são, efetivamente, 11%. Na Polónia, os locais diriam que eram 15% e são 2%. E assim por diante...

Como se pode explicar esta diferença entre a perceção e a realidade? Talvez os imigrantes sejam apenas muito visíveis, esse seu trauma: servem às mesas, entregam encomendas, conduzem carros, constroem casas... Fazem coisas, em público.

Ou talvez sejam simplesmente um alvo, dócil, da incomodidade de muitos, com palavra pública, aqueles que se sentem impunes a responder a inquéritos, sobre a sua estranheza sobre o mundo em que vivem e que não reconhecem, e que sentem que a sua comunidade é a mesma de há dois séculos. Mas não é, nem poderia ser. Na verdade, nunca o saberemos.

Então, o que fazer? A resposta mais decente seria a de partilhar e explicar números, estatísticas, dados.

Mesmo vivendo no contexto da idolatria dos dados, da quantificação, da identidade numérica, há números incómodos que nunca o serão em público. Isso, afinal, seria um problema para os algoritmos, que servem uma pequena minoria de consumidores e decisores a partir de uma suposta maioria ou das suas perceções, aquela que não existe, só a falar de números. Nada de novo, portanto. Se funciona e dá lucro, para tantos, para quê mudar?

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