No relógio da Europa
No seu último livro, Pátrias-Uma História Pessoal da Europa, Timothy G. Ash propõe que consideremos 1945 o Ano 0. Mas previne contra armadilhas várias, como ignorar anos e histórias anteriores decisivas, ou desatender casos particulares, como o de Portugal, em que ele próprio preconiza que o Ano 0 se situe em meados dos anos setenta, com o argumento de vivermos até aí sob uma ditadura fascista. Cumprindo-se amanhã meio século sobre as eleições para a Assembleia Constituinte, sugiro um olhar sobre um dos factores da excepcionalidade desse momento.
As últimas eleições levadas a cabo na I República tinham sido em 1925. Geraram um Parlamento de composição bastante diversificada (democráticos, nacionalistas, monárquicos, esquerda democrática, socialistas, católicos, união dos interesses económicos, independentes, etc), hoje falaríamos de grande “fragmentação”. Menos de um ano depois, em resultado de um golpe de Estado, seria dissolvido. E essa viria a ser uma “dissolução” de longo alcance: durante os 50 anos seguintes não haveria nem eleições livres nem deputados de diferentes partidos (todos os que integraram a Assembleia Nacional, do princípio ao fim, foram apresentados por um único partido). Esta prolongada supressão do pluralismo político, do papel do contraditório nas instituições e das liberdades em geral fez-se acompanhar de uma inculcação antidemocrática, anti-liberal e anti-parlamentar de uma intensidade e de requintes hoje difíceis de imaginar. Em discursos radiodifundidos, Salazar anunciou que dentro de 20 anos não haveria assembleias legislativas na Europa e foi ao ponto de declarar felizes as nações que não tinham que escolher…De 1945 em diante a inovação foram os “círculos distritais” - mas nem seriam introduzidas eleições livres nem de nenhum desses círculos alguma vez emanou algum mandato que não proviesse do partido único.
Promessa fundamental – e cumprida – do MFA, as eleições para a Constituinte foram, pois, as primeiras eleições livres em 50 anos. Seria superficial pretender que retomámos em 75 uma posição equivalente à que países como a França ou Itália viveram três décadas antes, nas suas eleições para as constituintes. Nenhum deles tinha por detrás um lastro anti-democrático, anti-liberal e anti-parlamentar de meio século e todo o seu cortejo de consequências, de prolongada recuperação. Evoluímos muito – mas a realidade é que, aquando da nossa adesão, o próprio Tratado de Roma já se abeirava das três décadas (a reputação de “bom aluno” em várias momentos da “europeização” repercute também essa realidade).
Quando a obra iniciada pelos constituintes se abeira do meio século, são os novos riscos, largamente internacionalizados – entre eles o recrudescimento nacional-populista e o crescendo das interferências entre processo político e procedimento judiciário, ambos ameaçando o Estado de Direito – que parecem estar a acelerar (ou apressar) a sincronização. Na nossa Europa, os procedimentos e ciclos democráticos já não decorrem sob a ameaça de más notícias vindas dos quartéis, mas o seu grau de exposição a notícias doutras proveniências está, em vários países, comprovada. Entre nós também.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.