Não deixes que a verdade estrague uma boa história!

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Estamos em 2074!

já com duas próteses de anca e um olho biónico, mas com os mesmos cabelos brancos, dou por mim a pensar que este ano, o ano de 2074, é o ano em que assumidamente a definição de veracidade foi reescrita nos dicionários. O ano em que os avatares deixaram de ser tabu. Deixaram de ser diferentes. É normal conviver com avatares, da mesma forma que é normal ir ao Galeto comer um prego com um par de amigos.

Lembro-me bem de Aitana López, a primeira influencer de IA, que quando foi criada no final de 2023, conseguia ganhar cerca de 10 000 euros por mês. Isto porque os influencers de carne e osso tinham o ego demasiado insuflado e, imagine-se, queriam pausas para comer e descansar. Hoje, é normal olharmos para os ecrãs e não sabermos se o que vemos é um “quem” ou um “quê”.

D.R. / Carlos Rosa

Com a disseminação das plataformas de IA, muitas imagens irreais eram geradas diariamente. Lembro-me também de aparecerem, no início de 2024, imagens falsas ou manipuladas com crianças que surgiam no contexto da guerra na Faixa de Gaza. Tudo mentira! Mas também me lembro de no final dos Anos ‘90 manipular imagens, em que eu criava, no meu amigo Photoshop, cenários perfeitos e inexistentes. São apenas 20 anos de diferença entre a criação destas realidades fabricadas, se bem que as realidades de 2024 eram muito mais rápidas de gerar. Só tínhamos de escrever umas palavritas no Midjourney e puf!, lá estava uma imagem nova, que aparecia assim que acabávamos de digitar o que queríamos. Nos Anos ‘90 não... era um suplício esgrimir argumentos com as ferramentas dos softwares  de edição. Horas e horas de sofrimento. Dias e dias a fio a gravar cópias dos ficheiros, não fosse o disco para o galheiro! A IA trouxe-nos isso. Realidades irreais, mas mais próximas de uma realidade em que todos acreditamos.

Hoje é tudo normal! Mas em 2024 não era.

Mentia-se de forma ofensiva com imagens falsas. Imagens que eram verdade, mas na verdade eram cogitações algorítmicas de uma máquina à mercê de seres humanos com intenções duvidosas. Mas também se mentia de forma inofensiva, na criação de mundos e cenários idílicos, que, em teoria, eram ou poderiam ser melhores para habitarmos. Tudo era uma novidade.

Hoje não. A IA é tão factual que quase não damos por ela. Está cá. Entranhou-se. É quase tangível. Já não é novidade. Da mesma forma que não é novidade estarmos em casa, mas, ao mesmo tempo, circulamos pela rua através dos nossos humanoides construídos à medida para que vivam a nossa vida por nós.

Hoje ter uma influencer de cabelo rosa, que é um programa, a correr num servidor é banal. Hoje, atribuir um Óscar a um algoritmo pelo argumento de um filme, não é uma novidade.
E convenhamos que, 50 anos depois desta penetração massiva da IA nas nossas vidas, a realidade se é ou não real pouco importa. O que importa é que a verdade não estrague uma boa história.


Designer e diretor do IADE - Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação da Universidade 
Europeia

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