Num misto de encanto e distanciamento, como quem consulta um tratado que escapa às regras comuns dos tratados, descubro o livro O Desembarque das Ondas, publicação da Livraria Linha de Sombra Editora, de João Coimbra de Oliveira (sendo essa também a designação do espaço de livros e cinefilia que podemos visitar no andar de cima da Cinemateca Portuguesa). Descoberta algo tardia, é verdade, já que se trata de uma edição de novembro de 2024, motivada por um evento de 2018.Recapitulando. Em 2018, precisamente, decorreu em Lisboa, no Cinema Nimas, um ciclo da Medeia Filmes a assinalar o centenário de Ingmar Bergman (1918-2007). Foram dirigidos convites a vários autores portugueses que, depois de verem ou reverem os filmes programados, em prosa e sobretudo poesia, escreveriam a partir da sua experiência. O número de contribuições foi-se alargando e o resultado é esta antologia com mais de 70 autores. Não exatamente “sobre” o cineasta, antes aplicando a escrita como aventura, questionamento e, por fim, oferenda - daí o subtítulo: “Antologia para Ingmar Bergman”.. Entenda-se: “para” Bergman significa escrever “com” Bergman, num atrevimento afetivo de que as palavras são o instrumento, a matéria e, por fim, o texto. Trata-se de seguir os caminhos ínvios dessas mesmas palavras, já que, como nos ensinou Roland Barthes, a escrita é “a ciência das fruições da linguagem”. No seu texto, António Cabrita aponta o extremismo poético de tudo isso, fixando-se no silêncio de Liv Ullmann em Persona (1966), ela que interpreta uma atriz que “perde” a voz, em palco, ao representar a personagem de Electra: “Um dia, em Electra, viu que estava / no palco errado. Como retribuir / o silêncio do público, enganando-o?”Com o seu título “roubado” ao poema de Daniel Jonas, O Desembarque das Ondas organiza-se - ou desorganiza-se, mas vai dar ao mesmo - como um desafio a esse assombramento primitivo do cinema: na sua vibração, as imagens tendem a anular a “necessidade” das palavras, o que, bem (ou mal) entendido, não nos faz desistir de falar sobre os filmes.Creio que é algo dessa contradição muito humana que está no poema de Helga Moreira: “Onde nem distraída se instala a fala. / O desamparo fecha-nos a boca / põe no olhar, no sorriso, legendas.” E também na pergunta/resposta que O Sétimo Selo (1957) suscita a Hélia Correia: “E quem assiste ao jogo? A morte assiste.” Ou ainda na proclamação ambígua com que Pedro Mexia começa a sua evocação de Luz de Inverno (1963): “O mundo está cheio / da glória de Deus.”. Vale a pena acrescentar que tudo isto envolve uma revalorização daquilo que no discurso crítico sobre os filmes procura, não “explicá-los”, antes caminhar com eles, enfrentando as perplexidades e os silêncios que habitam as suas imagens e sons. Neste tempo marcado pela miséria intelectual de muitos influencers, tratando os filmes como fast food, eis o cinema, aliás, as artes celebradas como origem e cenário de uma “reação em cadeia”. Que acontece, então? Gera-se uma “nuvem de estilhaços que transportam um pouco do fogo original e se tornam eles próprios no fogo original de outros estilhaços” (cito o prefácio de Luís Miguel Oliveira).São ideias que recusam as generalizações fáceis, a começar pela que insiste em definir “a” crítica como uma entidade compacta, em forma de rebanho. Muito pelo contrário, o trabalho crítico acontece através das infinitas diferenças que expõe e, na melhor das hipóteses, coloca em feliz coabitação dialética - estão em jogo componentes que “são únicas, pessoais e tendencialmente intransmissíveis” (como escreve Joana Matos Frias no seu posfácio). A obra de Bergman, justamente, tem o poder de nos confrontar com a verdade das nossas solidões.Jornalista