Na companhia de Frankenstein

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O cineasta Paul Morrissey faleceu na segunda-feira, em Nova Iorque, contava 86 anos. Ao ler os seus obituários, não pude deixar de recordar a inesquecível experiência de descoberta de um dos seus filmes mais célebres: Flesh for Frankenstein, produção italo-francesa com chancela de Carlo Ponti. Datado de 1973, teve uma distribuição errática, chegando às salas de vários países ao longo da segunda metade da década de 70 - em Portugal surgiu com o título Carne para Frankenstein, com estreia em Lisboa, no Cinema Monumental, em 1979.

Para mim (e estarei longe de ser o único), a aura espetacular de Carne para Frankenstein confunde-se com a memória dolorosa do próprio Monumental. De facto, poucos anos depois, em 1984, as salas gigantes da Praça do Saldanha foram destruídas - salas, no plural: não esqueçamos o teatro, indissociável da glória de muitas personalidades dos nossos palcos, incluindo Laura Alves; e também o Satélite, o pequeno cinema de “arte e ensaio” aberto em 1971 no interior do edifício original.

Concebido pelo arquiteto Raúl Rodrigues Lima, inaugurado em 1951, o Monumental foi um lugar, de uma só vez imponente e acolhedor, de toda uma cultura cinematográfica que tem vindo a ser destruída pela aceleração do consumo e pelas formas de ignorância e estupidez que alguns ecrãs televisivos continuam a alimentar.

A sua demolição, injustificável e vergonhosa, é uma ferida - cultural, precisamente - nas dinâmicas de uma existência democrática que, por vezes, para nossa maior desgraça, tende a enquistar-se na “ideia” segundo a qual a automática demonização de tudo o que vivemos até 1974 é a melhor maneira de lidarmos com a pesada herança da ditadura do Estado Novo.

"A herança do cineasta Paul Morrissey cruza-se com os prós e contras da sua colaboração com Andy Warhol.” João Lopes. IMAGEM: D.R. / Arquivo

Pois bem, no Monumental, Carne para Frankenstein foi um acontecimento com um especial cartão de visita. Não exatamente a popularidade de um certo cinema de terror ainda marcado pela inspiração da produção britânica da Hammer Films, mas a projeção a três dimensões. O 3D tem sido mesmo uma espécie de assombramento técnico que, ciclicamente, vai pontuado a evolução dos filmes: em meados da década de 70, encenar o romance de Mary Shelley com as imagens “em relevo” podia ser, afinal, um elemento da mais pura ironia - Morrissey concebeu o seu Frankenstein como um Grand Guignol de bizarro humor, de alguma maneira visando a moda dos filmes mais “provocatórios” da época.

Como uma espécie de castigo simbólico, o filme surgiu na maior parte dos mercados com um título que sugeria uma continuação do trabalho que Morrissey tinha desenvolvido, em Nova Iorque, com Andy Warhol. A saber: Andy Warhol’s Flesh for Frankenstein. Porquê castigo? Porque, rezam as crónicas, Warhol se limitara a fazer uma visita de cortesia durante a rodagem, em Roma, nos estúdios da Cinecittà. Carne para Frankenstein não era, de modo algum, um prolongamento da colaboração que gerara a lendária trilogia realizada por Morrissey, com chancela de Warhol: Flesh / O Prostituto (1968), Trash / O Vício (1970) e Heat / O Cio (1972), sempre com a presença emblemática de Joe Dallessandro.

A história de tudo isto complica-se a partir de 2012, um quarto de século depois da morte de Warhol, quando Morrissey, numa entrevista a Sam Weisberg (Bright Lights Film Journal), veio dizer que ele era o verdadeiro autor dos filmes feitos sob a égide de Warhol - recorde-se um dos títulos fundadores da sua colaboração, Chelsea Girls (1966), sintoma de um certo gosto da irrisão que pontuou uma época de muitas e contraditórias convulsões culturais.

Para lá da revolta de Morrissey contra Warhol, estes são objetos cinematográficos que nos ajudam a conhecer as transformações dos corpos (logo também das suas representações) num tempo ainda distante dos artifícios figurativos instaurados pelo digital. Um ano depois de Carne para Frankenstein, a mesma equipa realizaria Blood for Dracula / Sangue Virgem para Drácula, renovando a nossa perplexidade face ao que era, ou poderia ser, um novo realismo tecido de sarcasmo. Eis uma doença narrativa de que nunca mais nos curámos.

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