Morrer de ser “preto”
Enquanto muitos insistem na pretensa bondade de “não ver cores”, e outros tantos acusam os anti-racistas de instigarem ódios, com “a moda do racismo”, mais uma pessoa foi assassinada em Portugal apenas por ser negra. Ou, para usar os termos racistas que, invariavelmente, acompanham essa sentença de morte, mais uma pessoa foi assassinada em Portugal simplesmente por ser “preta”.
O desprezo pelas vidas negras está tão normalizado que o recente homicídio de Ademir Moreno Araújo, nos Açores, merece pouca ou nenhuma atenção mediática.
Aliás, a motivação racista do crime surge - quando surge - como algo marginal, atribuído a uma qualquer percepção exagerada da realidade.
Porque, à luz da prática portuguesa, agredir até à morte uma pessoa a quem se dirigiram ou dirigem insultos racistas é apenas fruto do calor da discussão, e nunca reflexo de tradições supremacistas brancas. Tão enraizadas que, não vá a Justiça tecê-las, convém esmiuçar sempre a história das pessoas negras que morrem às mãos de pessoas brancas.
Neste exercício inquisitivo - e porque a tradição racista ainda é exactamente o que sempre foi -, constroem-se narrativas de protecção ou absolvição do criminoso, e de condenação da vítima.
Só assim se entende que 17 dias depois do assassinato de Ademir Moreno Araújo, aos 49 anos, continuemos sem o conhecer, para além da cidadania cabo-verdiana, e da profissão de calceteiro.
O retrato do Ademir como pai, marido, irmão, amigo e colega - para citar apenas alguns dos papéis que assumiu - teria o condão de humanizar a sua história, em vez de a atirar para uma vala comum de desumanização de vidas negras.
Da mesma forma, a estratégia de proteger a identidade de racistas - sob a alegação de presunção de inocência, que não vemos aplicada nas campanhas de assassinato de carácter de vítimas negras, nem nos processos em que os suspeitos são negros - promove uma cultura de permissividade.
Ao racista permite-se sê-lo, sem que se exija sequer o decoro de parecer que não o é.
Assim se explica, tal como já sublinhou o dirigente do SOS, Mamadou Ba - numa publicação mediatizada a partir de um processo judicial -, que João Martins, embora condenado a 17 anos de prisão efectiva pelo assassinato bárbaro de Alcindo Monteiro, continue, “salvo raras exceções”, a “passar pelos pingos da chuva do escrutínio público”.
Aliás, no ano em que se cumprem 29 anos desse crime, quantos de nós conseguirão reconhecer esse assassino, na infelicidade de nos cruzarmos com ele?
E nem o facto de João Martins persistir na carreira criminosa, especializada em demonstrações de ódio racial, ajuda a construir cadastro mediático, reduzido a um par de fotos não apenas desactualizadas, mas contaminadas pela presença de óculos.
O padrão de absolvição mediática de racistas repete-se a cada crime: vemos as imagens das vítimas replicadas até à náusea, enquanto os agressores - a menos que escolham aparecer, nomeadamente nos TikToks da vida - beneficiam de um sistema de protecção.
Recordo-me, por exemplo, que a primeira vez em que ouvi o nome do assassino de Bruno Candé foi numa das manifestações que se realizaram em sua homenagem, uma semana após o crime.
Até esse momento, Evaristo Marinho, entretanto condenado a mais de 22 anos de prisão, era apenas um septuagenário reformado com carreira na enfermagem, e possíveis sequelas mentais por ter combatido nos antigos territórios colonizados. Na ressaca do homicídio, nem os sucessivos e consistentes relatos de um contínuo de agressões racistas nos dias anteriores à execução, inibiram um retrato abonatório.
Pelo contrário, Bruno Candé inspirou campanhas de assassinato de carácter bem eficazes, a avaliar pelos inúmeros comentários produzidos na altura sobre eventuais atenuantes - em vez de agravantes - do crime.
Num jogo de vale tudo em nome da absolvição e normalização racista, assistimos mesmo, no ano passado, a uma espécie de recurso televisivo de uma sentença judicial. Bruno Fará, condenado a 10 anos e três meses de prisão pela morte do estudante cabo-verdiano Luís Giovani Rodrigues, teve honras de defesa na TVI, onde não faltou o retrato de bom homem e pai de família.
Revisito esses casos, deixando tantos outros de fora, à medida que percorro as primeiras cenas pós-assassinato de Ademir Araújo Moreno. Além da prática reiterada de minimizar - e até mesmo invisibilizar - a motivação racista do crime, observa-se, como sempre, a ausência de um criminoso. Porque, bem desumanizadas as vidas, ninguém morreu. “Apenas” mataram “um preto”.
Não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.